quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/21/2005 12:18:07 PM

MARCA D' ÁGUA

Gravura Tributo/Paul Klee


Fabrício Carpinejar





A luz na água é vista como parte da água, mas não deixa de ser luz. Minha mulher é água para a boca e não deixa de ser clareza para os olhos. Há um detalhe que me enternece nela. Que reparo sempre quando chega a chuva. Que procuro no momento em que deixa o banho e se demora a escolher as roupas diante do armário. Que aguardo com a serenidade de um pedido antigo. A marca da vacina em seu braço direito. A marca da vacina feita em seus cinco anos. É a fotografia que guardarei dela. A fotografia que não enjaulo em porta-retrato, em álbum, na carteira. A vacina em que ela controlou o choro, para impressionar os pais; que conteve a dor da agulhada, para se impressionar. A marca da vacina que todos têm e que muda conforme a esperança. A marca da vacina que a acompanhou vida adentro, que guardou segredos, bocas, beijos, amantes e permaneceu fiel à infância. A marca da vacina que enrugou com o tempo, diminuiu com o tamanho da memória e não se apagou, como um umbigo que se fecha e ainda mantém o elo entre os dois mundos. A marca da vacina que alisou uma porção ínfima da pele, com os efeitos de uma cicatriz. A marca da vacina que não abre com o tato, que não cede com o medo. A marca da vacina que combina com seu pijama, com seu vestido, com seu jeans. A marca da vacina com a leveza de um cisco e o poderio do sol. A marca da vacina que não é um sinal de nascença; é um sinal de obediência, um sinal de sacrifício, um sinal de modéstia, um sinal de confiança. A marca da vacina que poderia ser um rosto no recheio de uma bolacha, um rosto desenhado com a língua. A marca da vacina que perfurou o chão para ouvir o sangue. A marca da vacina como uma moeda na toalha da terra, de felpas amansadas. A marca da vacina como uma pedra do mar, excesso de espuma. A marca da vacina como uma ostra espiando. A marca da vacina que continua me olhando quando ela vira a face para o outro lado. A marca da vacina como a gola de um casaco, com os pêlos arrepiados ao derredor. A marca da vacina que não me conta o passado e o preserva, que não mente e não reduz os fatos. A marca da vacina com o cheiro de uma maçã em papel manteiga, com a altivez de uma palavra em hebraico. A marca da vacina como uma horta, não um jardim, como uma varanda, não um pátio, como azulejo de cozinha, não vidro. A marca da vacina dela, meu décimo primeiro dedo da mão.

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