quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/24/2005 11:57:42 AM

DESABOTOANDO A CAMISA

DA CINTURA AOS SEIOS


Gravura de Chagall


Fabrício Carpinejar





Na minha infância, até ver as horas tinha que tirar o relógio do bolso; tinha que ir à sala; tinha que consultar a posição da luz; tinha que aguardar o galo e os latidos do cão. O tempo não estava no pulso, não estava evidente. O corpo se acostumava a segui-lo por dentro. Raro também era o telefone de teclas, girava o disco pesado de cada número para completar a ligação. A voz ficava parada em um único lugar, não havia jeito de fazer duas coisas simultaneamente. Telefone público provocava filas de banco. Escutar a conversa do outro acabava sendo uma fatalidade. Aprendi a sair de mim com a porta fechada do quarto. Pressentia as visitas pelo barulho na grama. Passo rancoroso: adultos. Macio: gatos. Suave: crianças. O portão emperrava quando vinha o carteiro.


Há feridas que não se curam, apenas se esquecem de doer. Há alegrias que não se completam, mudam de vento. Estar informado não é satisfação. Hoje estamos mais informados, porém bem mais insatisfeitos. Conhecemos tudo o que acontece ao nosso redor, o que não amansa a solidão. Pelo contrário, agrava a solidão. A informação não resultou em paz. Porque informação não é intimidade. A paz chega somente da intimidade.


Seduzir não é encantar, mas se estranhar. Amar virou prova de estudo, de erudição. Manuais, livros, revistas transmitem o receituário básico de conquista. Como conquistar alguém sem se perder? Como conquistar alguém sem a insegurança de não saber fazer na hora de fazer? Sacrificamos a intuição pela técnica. Seguimos uma receita que tudo é possível esquecendo de se tornar possível antes. Não existe liberdade sem personalidade. Talvez o amor seja possível, nós não. São detalhes esperando a dispersão da lanterna. Minha mulher dorme com o rosto emoldurado pela coberta. Sempre tapa os ouvidos. Parece uma astronauta se protegendo da gravidade. Ela também dobra as pontas dos travesseiros como se fossem cachos. Ao deitar, espero que ela faça esse ritual. É o meu relógio. Minha mulher quebrou dois saltos em sua vida. Para que guardo isso? Para nada. Ao amar, busco dados que só servem para amar ainda mais. Não poderei dizer o que me arrebata, o que me arrebata são os silêncios dela se cumprindo sem me perguntar. Como seu modo de desabotoar a camisa da cintura para os seios, não como o costume, de cima para baixo.


Sei que quando ela vai ao salão passa por uma loja e reserva algumas roupas. Não compra no ato. Depois de uma semana, volta lá e compra. Grande coisa? Para mim é o que interessa. Desejos se alimentam de inutilidades. Minha mulher não coloca suas roupas novas em cabides, e sim no armário, dobradinhas, durante dois meses. Seu jeito de sentar sobre uma perna revela seu jeito de encarar os problemas. Quando está com raiva, procura a janela da cozinha. Quando está feliz, recorre à janela da sala. Minha mulher pode ser a mais pacata e tediosa para quem não convive com ela, mas comigo é sobrenatural e intensa. Não nos desperdiçamos em interrogatórios; observamos. Cada sombra dela me interessa porque não sei explicar e ainda assim me faz bem.


Há o sol de gripe, que me faz espirrar; o sol de inverno, que me põe a sentar; o sol do verão, que encurta as marquises; o sol do entardecer, que troca a minha pele. Quantos sóis circulam na respiração dela?


O que me liga a ela não contarei aos amigos. Não será tema de mesa de bar. Não exaltarei aos familiares. É discreto demais para ser motivo de fofoca ou para agregar fama. É discreto como esticar uma cadeira de praia na varanda. É discreto como a fumaça de um chá em manhã de inverno. É discretamente fundamental. Nenhum homem conta o que realmente importa. O medo de ser entendido é maior do que o medo de não ser entendido. Não importa adivinhar se minha mulher fez as unhas e os cabelos se não consigo adivinhar quando ela não fez as unhas e os cabelos. Não procuro em minha mulher a mudança, visível e aberta, mas a permanência, a que a torna diferente em mim.

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