quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/18/2005 12:02:00 PM

TAMPA DE VIDRO

Fotografia de Fernando Rozano


Fabrício Carpinejar





Fui trocar o gás de cozinha e o entregador verificou o vencimento da mangueira. Disse que estava vazando e já fazia mais de cinco anos que não era trocada. Certo, falei, vamos lá. Não corro o risco do pior depois de pensar o pior. Gás e crianças não são bons amigos. O cara ficou repondo a peça enquanto arrumava a pasta do Vicente na sala. Até que escuto um estouro de boiada na cozinha. Sim, o arrumador se apoiou no vidro do fogão e espatifou a tampa. Começa a romaria: minha mulher liga para dezenas de ferragens, vidraçarias e fornecedoras à cata de uma tampa de fogão. "Não há desse modelo!", "É melhor trocar de fogão" e "Não sei quem faz" foram algumas das frases ouvidas. O fogão está funcionando normalmente, atende com eficiência e me recomendam trocá-lo porque não fabricam tampas de vidro. Convenhamos. Vender o certo pelo detalhe. O pior é que muitos encontram nisso o motivo de trocar o aparelho, pois não o suportam sem tampa. Olham ele e só se lembram que havia um vidro brilhando decorado por um pano de prato floreado, onde podiam escorrer os copos e piscar o sol. Não olham o que dá certo. Olham o que falta. Nos relacionamentos, é a mesmíssima coisa. Todos têm uma tampa de vidro em sua vida. Tantos são os que findam um romance porque a tampa de vidro quebrou. Não quero julgar, eu gostava da tampa de vidro. Mas passei a gostar da tampa de vidro depois que ela quebrou. Antes nem cogitava que poderia quebrar ou que existia. Um ciúme bobo, uma teimosia à toa, uma briga sem finalidade provocam o rompimento do tampo. Excesso de pressão não pode resultar em pressa. E que atitude tomar? Praguejar que o passado do fogão, o passado do par, foi uma droga. Mentir, disfarçar, convencer-se de que o fogão é deficiente e colocar fora, de que a memória é deficiente e comprar outra. A obsessão pelo capricho estraga a verdade. A verdade é imperfeita, de vez em quando nem toma banho e ainda assim encanta. Fazer a casa pela aparência não significa residir nela. Reclama-se da rotina, porém defende-se a rotina arduamente. Se alguma coisa sai fora do lugar, da ordem, do previsto, há o escândalo para defendê-la. Não é um contra-senso? Admiro agora meu fogão, as seis bocas sorrindo sem aparelho. O fogo amadureceu para falar.

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