quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/31/2005 01:09:22 PM

MÉDIA COM PÃO E MANTEIGA

Cena do filme "Nostalgia" de Tarkovski


Fabrício Carpinejar





Quando a gente guarda a alegria, ela diminui. Quando a gente guarda a dor, ela aumenta. Meus sentimentos não freqüentaram igual escola. A esperança se formou em escola pública. A avareza saiu de escola particular. Meus sentimentos mudam de freqüência, não têm a mesma escolaridade. Muitos não completaram o Ensino Fundamental. Minha raiva é primária. Xingo mudanças de pista sem pisca no trânsito, enlouqueço em filas, abomino preconceito, conversa alta no cinema e ser abandonado no restaurante. A raiva vai agredindo antes de refletir. Minha ternura já é pós-graduada. Posso me condoer se um caramujo demora uma semana para atravessar a parede da sacada ou adoecer se um passarinho é pisoteado pela rua. Bipolar é pouco para mim, sou multipolar. A depressão é somente um entusiasmo que pensa demais.


Predomina o hábito maniqueísta de uniformizar o perfil das pessoas, de fechar a conta, de concluir se alguém presta ou não presta, eliminando as contraprovas. Se o cara é um péssimo marido, conclui-se que é também um péssimo pai. Não é assim. Pode ser um péssimo marido e um excelente pai ao mesmo tempo. Pode trair, discutir e brigar com a mulher e cuidar dos filhos de um jeito amoroso e único. Pode ser um gestor impecável no trabalho e se endividar sem limites em casa.


Minha dor é inteligente, minha alegria é burra. Não amadureci de todo, tampouco me infantilizei de resto. Sou desigual, como uma família que se divide e migra para tentar chance em outro estado. Não sofro parelho, harmônico, um naco por vez. Sofro para explodir, em uma única dose, até cansar de sofrer. O travesseiro detesta, mas nesse momento é rebaixado para toalha de rosto. Pior é quando ele se torna tapete do banheiro. Minha euforia é apressada, quis trabalhar cedo e largou os estudos. Trocou a mesada pelo cartão-ponto. Não existe harmonia entre as experiências. Minha generosidade ganha a vida trançando cestas de vime para roupas sujas. Minha criatividade monta pandorgas para engrossar o vento. Minha persistência fez MBA para se sobressair diante da concorrência. Na poesia, desenvolvo profissões extintas. Cada lembrança é uma personagem diferente em mim. Expresso a mais analfabeta emoção para demonstrar sábia serenidade mais adiante. Desisti de me censurar. Não mudo de opinião, mudo o sentimento da opinião.

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