quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/30/2005 10:49:22 AM

DIA ÚTIL

Cena do filme "O Espelho" de Tarkovski


Fabrício Carpinejar





Com o fim do casamento, o alívio. O separado recupera sua liberdade. Depois das brigas, dos questionamentos, dos julgamentos, das histerias e suspeitas entre os dois, encontra-se novamente sozinho para fazer o que quiser. Vem uma alegria de poder sair de noite, de ir ao cinema, de não prestar contas e recibos, de viver de uma forma mais relaxada e solta. O separado tem um longo final de semana pela frente. Um delicioso domingo para dormir sozinho e se estirar em linha cruzada pela cama, um delicioso sábado para farrear e beber todas, uma deliciosa sexta para freqüentar a geladeira sem se importar em lavar os pratos em seguida. Tempo de sacudir a poeira da agenda, falar sem parar, tentar entrar no circuito social, apesar dos dez anos que o distanciam da rotina de solteiro. Quem se separa apenas quer sair do inferno. Qualquer saída, ainda que desesperada, é uma porção de céu. Os três primeiros dias acontecem de um modo inconsciente e mecânico, em ato reflexo. Nada é pesado, avaliado e a soltura lembra férias escolares. Mas e depois? Depois o separado entende que sua história não é mais sua, mas partilhada. E sente saudades fisicamente, uma dor de rim. E retorna para casa e espera e espera ela aparecer de súbito. E observa o telefone como uma tartaruga a sair da casca. Olha ao redor e não identifica mais seu território. Não tem ninguém para conversar, para animar e fazer valer acordar cedo para o trabalho. Um vazio o empareda num canto. É contar com uma morta íntima ao alcance dos olhos, que encontrará no café, na padaria e na locadora depois de enterrada. O separado tem o dom mediúnico de enxergar fantasmas. Pena que os fantasmas não o enxergam. Volta a procurar os amigos antigos e constata que estão casados. Os únicos amigos que têm são casais, também amigos da ex-mulher. Como xingá-la? Como dizer que precisa dela? Como expor o segredo? Perdeu confidentes e tenta apresentar força e coragem, não pode voltar atrás, tenta ser orgulhoso, não pode voltar atrás. Na verdade, voltaria correndo, como um vício, uma necessidade, uma dependência. Sua indecisão amplia ainda mais o isolamento. É deserdado da própria biografia. Os móveis da residência mostram o convívio, os lençóis ainda guardam o cheiro dela, a televisão insiste em reprisar os programas favoritos da esposa, as rádios tocam as músicas que dançaram, o cachorro fica cheirando o vão da porta infinitamente e pára de comer. Depois do feriado da separação, bate uma tristeza inconsolável. Porque o amor é um dia útil.

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