quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/28/2005 08:53:50 AM

A FIDELIDADE DOS PÁSSAROS

Cena do filme "O Espelho" de Tarkovski

Inspirado em conversa com Paulo Flávio Ledur


Fabrício Carpinejar






O homem é um bicho curioso, sacrifica uma relação e parte para outra por ambição. Se casa cedo, pensa que faltou conhecer mais mulheres antes. Se casa tarde, acredita que quando solteiro havia mais chances de ser feliz. Homem é um bicho nostálgico. Nunca está satisfeito com o que tem. Fica enjoado com rapidez. Enjoa-se de si mesmo. Ao invés de melhorar e treinar com afinco, troca o técnico ou culpa a torcida. O homem cogita que é desfavorecido. Enquanto come olha o prato do outro. Deveria aprender mais com os pássaros. Um pássaro não morde vários frutos ao mesmo tempo, para descobrir o sabor de cada um deles. Não estraga os frutos pela ânsia da posse. Não quer ter todos, mas ser todos em um. Não destrói a árvore para fazer barulho. Ao pegar um fruto num dia, volta ao mesmo fruto no dia seguinte. É leal e econômico no afeto. Descasca o sumo de leve com o bico e toma cuidado para não assustar os insetos dentro. É devoto em sua escavação. Leva o alimento para os filhotes, abastece seus olhos africanos, engrossa seu ninho de estrelas e regressa ao seu ponto de origem. Um fruto durará uma semana em seus volteios. Até não sobrar nada, até a semente ficar lustrada de sol. O homem é um bicho insatisfeito. Deixa marcas, cicatrizes, tatuagens e provas de que esteve ali. Morde uma cesta inteira de maçãs sem sequer terminar uma delas, sem conhecer a alegria do pecado de se dedicar somente a uma delas. Pode amar para provocar ciúme, abandonar uma paixão para mostrar independência, trair para magoar, ferir para gerar autoridade. Interessa-se pela quantidade, por contar quantas mulheres teve, por contar quantas vidas perdeu. O pássaro é um bicho invisível. Não muda a ordem, é capaz de arrumar sua cama mesmo hospedado em hotel. O homem deveria observar mais os pássaros. Eles mordiscam os brincos das árvores e não derrubam as orelhas. Não precisam de platéia para matar a fome. São concentrados, não se dispersam na avidez. Os pássaros circundam, namoram, seduzem a fruta antes de pousar. Batem as asas com força para depois descer o próprio corpo flanando. Têm imaginação. A imaginação hidrata e faz a saliva subir. Um romance sem imaginação é livro técnico. Um amor sem imaginação é manual de geladeira. Um homem sem imaginação é um bicho esquisito. Ao transar sem imaginação apenas arruma sua gravata no espelho. Ao mastigar sem imaginação vai apoiar os cotovelos na mesa. Ao abraçar sem imaginação carregará garrafas vazias. Um homem sem imaginação é um bicho morto.

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