quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/18/2005 10:52:31 AM

CABELO NO PRATO

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





No momento em que se encontra um fio de cabelo no prato, o que fazer? Trocar de prato, tirar educadamente o fio ou fazer cara de nojo e perder a fome. É uma encruzilhada. Um cabelo no prato faz emergir todas as repulsas. E se o fio é da tua própria cabeça? Terei nojo de mim? Como descobrir, em segundos, de quem é o cabelo? A sujeira envergonha? É óbvio que se pode culpar a cozinheira ou o garçom. Culpar o restaurante pela falta de cuidado. Fazer um escândalo como se a inocência castanha na comida fosse uma barata. Em um lugar chique, o cabelo é a fibra de uma verdura. Em um boteco, o cabelo é denúncia para o Procon.


São nesses atos levemente inúteis que a personalidade é revelada, a mostrar desapego ou obsessão, desprendimento ou rigidez. A pessoa que recusa o fio é capaz de dóceis monstruosidades em segredo. O fio é retirado para que ninguém veja ou por que se odeia? Somos maníacos pela limpeza, pelos bons modos e valores, e esquecemos que estar vivo é ser vulnerável. Contagiar, beijar, abraçar, suar, tossir, chupar, coçar. Redoma de ferro só em serviço de quarto no hotel. Rasguei o mosquiteiro da infância pois não suportava dormir com uma proteção. Dormir é se desproteger. Tinha a impressão de que a família estava me escondendo. É horrível sacrificar a noção espacial do quarto ou do corpo no quarto.


Cabelo no prato é a principal pergunta da vida, mais do que o suicídio, que pode começar ali. Abafar ou rir, mostrar ou disfarçar? O cabelo no prato é o desconforto em demonstrar a verdadeira emoção. Não demonstrar a emoção é uma emoção. Eu amava uma menina que não ria e cada vez mais me tornava um palhaço para provocar sua reação. Trabalhava para ela dia e noite, de graça. A convivência passou a ser um esforço ou um desespero. E nada. Um dia, ela me disse enjoada: por dentro, eu posso fazer o que quiser. Apesar do rosto imóvel, ela reagia. Isso me assustou, portanto seus reflexos aconteciam sem sinal na superfície. E muitos são assim: não choram, não levantam nenhuma contorção da boca. Pais que ralham com os filhos, criticam, apresentam uma impiedosa educação transmitem uma imagem de intolerância e frieza. E de repente não são o que irradiam. Dificilmente partilham e se doam, mas são outros por dentro. Tolhidos por fora, sofrem de uma hemorragia interna na linguagem. Defendem que a seriedade é amor, não o contrário. E amam preocupados, autoritários, soberbos, para evitar que a fragilidade de suas memórias prejudiquem a concentração. Isso mesmo, são concentrados em um papel, que decoraram dos seus pais ou de seus professores, de seus castigos e de seus traumas. Não admitem abrir a guarda, se divertir, transbordar. A intimidade dói e acorda pavores ainda não assimilados, ainda não compreendidos, ainda não sarados. A única forma que encontraram de falar da dor é não pensar nela. Quem não consegue se comunicar não está morto. Está morrendo pela ausência de socorro.

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