quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/11/2005 09:15:03 AM

O ESCURO QUEIMA

Foto de Edward Zvingila


Fabrício Carpinejar





Vou sair de noite com o meu filho pequeno e ele pede que eu passe bronzeador. Explico que não há sol. Ele insiste e entendo: o escuro queima. Atravessar uma noite em claro, com medo das dívidas, queima. O salário nunca será suficiente para cima ou para baixo - é apenas um adiantamento. Quem mais tem mais gasta, quem nada tem mais tenta gastar. Ambos enrolam saldos bancários como terços de papel. Jogo na Mega Sena e invento destinos para a bolada. É uma diversão garantida imaginar fiado sobre o que faria com milhões em minha conta. Poderia viver só com a CPMF da transação. Sou previsível até fora dos hábitos. Não é o dinheiro que manda na vida. É a falta de dinheiro. Tanto que ter crédito é mais importante do que ter grana. Muitos colegas usam o negativo como saldo positivo. Mudam apenas a fonte do empréstimo para pagar um antigo empréstimo. E não conseguem relaxar, descansar, oprimidos por uma generosidade ao contrário: de dar o que nem sequer desfrutam. Gastam o que não sentiram sequer o cheiro. Gastam o cheiro de sentir. O homem se consome em segredo, como uma úlcera, como uma gastrite, ácido que estoura pelo acúmulo. Entendo quem bebe para esquecer, quem esquece para beber, quem finge que é uma criança para ser levado pela mão. O desespero é uma ciência. Não importa o grau de instrução, na dívida se é analfabeto. Um iletrado. Um inconseqüente. Um irresponsável. O devedor pede desculpa já no café da manhã e não se perdoa de madrugada. Nada mais implacável do que encontrar uma maneira de amansar a fúria do dia seguinte e não contar com uma sombra familiar para repartir a inquietação. Nada mais implacável do que perder a casa por falta de pagamento e baixar o olhar, impotente, aos filhos enquanto o oficial de justiça e os policiais empurram tudo para fora. No despejo, a única honra possível é recolher suas coisas antes dos estranhos. Nada mais implacável do que recuar produtos na esteira no mercado, escolher entre o essencial e o essencial, para chegar a um valor suportável. Dívida segrega, é pior do que isolamento. É dor do cansaço, muscular, sem diagnóstico. E aquilo que é quitado não dura mais do que uma semana. O mês deveria ser semanal para diminuir o desastre. Um recibo é a única carta que se espera. Os problemas imaginados crescem em cativeiro. Os sonhos que não são compreendidos viram pesadelos. Como não se compreende dois terços do que se vive, persiste a desvantagem onírica. O escuro queima. Apavora. É como se o ladrão tivesse, em movimento inverso, dentro de casa procurando sair para a rua. A maioria é endividada e aparece com vergonha de ser descoberta. Pisar nos próprios ossos uma vez na vida é tão certo quanto escutar Ave Maria em um matrimônio. É estranho, mas amarravam latas nos leprosos na Idade Média e hoje amarram latas nos carros nas saídas do casamento. A pré-história da alegria é a maldade. Entrar no SPC não representa o fim do mundo. Não significa desonestidade, calote, roubo. A tristeza da dívida não está em si, mas em suas conseqüências morais como a humilhação. Crise, que todos temos, não é crime. Dificilmente alguém é um endividado por esporte, mas um endividado porque não houve um outro jeito. Presenciei em Porto Alegre, tempos atrás, um sistema cruel de cobrança, onde homens vestidos de vermelho visitavam os devedores, constrangendo e aviltando. Era um clássico: os vermelhos contra os amarelos. Torcia para o time dos carteiros, bonzinhos, que entregavam contas sem encarar o destinatário. Os vermelhos faziam ameaças e quebravam o adversário na linha de fundo. Quando apareciam, não havia como esconder o ridículo da vizinhança. A partir daquela data, o armazém não venderia fiado ao freguês abordado. A insinuação é mais destrutiva do que a fofoca, a insinuação não oferece direito de resposta. Agora, a pressão acontece por telefone, silenciosamente, em consultas e bloqueios. Não existe como fugir das dívidas. Nem fazer as dívidas fugirem. Falir no dinheiro é ainda melhor do que falir na amizade, na paixão, na filiação. Deve-se conhecer o inferno, no mínimo, por curiosidade. As histórias que mais me prendiam de pequeno eram as dos demônios mexendo em caldeirões. Descobri que eles sabem cozinhar, o que é um bom sinal. Fome ninguém passa no inferno.


(Esse texto é a minha coluna de estréia na revista mensal Idéias, da Travessa dos Editores, de Curitiba (PR), edição de fevereiro)

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