quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/25/2006 06:10:54 PM

Jornal Zero Hora, caderno Cultura

Porto Alegre, 25 de fevereiro de 2006. Edição nº 14794


Literatura


QUANDO O LIRISMO É A ÚNICA SAÍDA

Em "Joana a contragosto", o texto ácido e sarcástico do escritor paulistano Marcelo Mirisola, autor de "O azul do filho morto", apresenta agora a poesia das histórias de amor malsucedidas


FABRÍCIO CARPINEJAR*




Marcelo Mirisola

Foto(s): J.R. Duran, divulgação/ZH



"Eu tive um certo pudor em pegar na mão de Joana...sei lá, achava que ia escorregar. Não sabia como fazer. Talvez não tivesse vocação para conduzi-la e não tivesse vocação para olhar nos olhos dela."



Se esse fragmento fosse questão de vestibular, dificilmente um candidato acertaria o nome do autor. Um texto com o balanço da bossa, lírico até a medula, feminino como o som de uma harpa. Vindo de uma voz insegura, hesitante e nervosa, que sofre dos cuidados da educação. Poderia ter sido extraído de uma crônica nostálgica de Rubem Braga ou de uma carta de Antonio Maria.


Mas é de Marcelo Mirisola, do seu novo romance Joana a contragosto (187 páginas, R$ 27,90), em sua estréia pela Record. O mesmo Mirisola ácido da novela O azul do filho morto, sarcástico de Bangalô, que leva desaforo para casa e também empresta para quem quiser encrenca. Mirisola mudou radicalmente. Mergulha na poesia para narrar uma dor-de-cotovelo. Faz uma parceria espírita e involuntária com Lupícinio Rodrigues. Joana a contragosto é algo como Nervos de aço romanceada.


O personagem M.M. (com as iniciais de Mirisola e também escritor, claro, para confundir) se apaixona por uma leitora a partir de fotos e mensagens trocadas pela Internet. Uma noite de amor no Rio de Janeiro, várias transas sem camisinha e o homem que se via dono da situação perde o prumo e o senso. E logo é abandonado, sob a alegação de que ela sente amor, mas não tesão por ele.


O livro descreve a fossa com minúcia clínica. "A única coisa que sei é que escrevo este livro a contragosto. Ela não sentiu tesão comigo. É disso que Joana me acusa - depois de cinco fodas, da noite mais bonita de minha vida de chimpanzé. Tudo bem. Ninguém tem obrigação de dar tesão a ninguém. Nem de exigir algo em troca."


O romance consumirá uma caixinha inteira de kleenex. E ainda faltará. M.M., quanto mais apanha, mais tenta entender o que aconteceu de errado. Quanto mais sofre, mais é seduzido pela versão feminina de sua canalhice. O que aconteceu de errado é que deu tudo certo pela primeira vez. Mas Joana não está disposta a negociar. Desbaratina, despede-se com um louco beijo antes de entrar no táxi. Lega a promessa da volta que não se cumpre. Faz o escritor desaparecer na desvalia. Toma a pílula do dia seguinte para matar qualquer possibilidade de filho. M.M. sonha assim com a filha que não nasceu, "uma indiazinha de olhos amendoados", sonha com a estabilidade, com a rotina, com tudo o que sempre abominou. M.M. não está nem ligando para o vírus HIV que acabou de contrair com ela. Busca mais uma chance, desesperadamente uma chance. "O que tenho é Joana e minha solidão. Ainda é pouco, quase nada diante do amor que sinto por ela."


Paulistano, formado em Direito (que não exerceu), Mirisola - dentro do texto - larga as putas, as taras, os temas profanos e clandestinos, o machismo, a arrogância, a egolatria do tamanho do bigode de Salvador Dalí, em nome de uma paixão simples e prosaica. É um novo Mirisola, essencial e sensível. Toda a raiva que destinava ao mundo direciona para si. Autocrítica sem consolação. No corpo pulsa uma esperança frustrada, pusilânime, mesmo assim uma esperança, o que antes não aparecia em Fátima fez os pés para mostrar na choperia (1998), O herói devolvido (2000), O azul do filho morto (2002) e Bangalô (2004). É como se deixasse finalmente a raiva desordenada da adolescência, a puberdade do quartinho de empregada, os programas favoritos de tevê, os azulejos que chupava, o mandiopam, a proteção materna e sufocante. Mirisola cresceu. Já era escritor pronto. Agora é homem feito e, por isso, falível e emocionado. Como não suspirar junto com M.M., da janela de um avião, a observar um Rio de Janeiro triste, de volta para casa sem a mulher: "Sofria pelo dia encoberto, pelo Cristo estrangulado em nuvens de magnésia bisurada e por estar vendo uma Guanabara que não existia mais lá do alto, chorei por causa de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e por quarenta anos e cinqüenta minutos de vôo ser tão pouco tempo para Joana e quase uma eternidade para mim, eu estava indo embora."


Em entrevista exclusiva ao Cultura, Marcelo Mirisola - fora do texto - trata de confundir ainda mais biografia e ficção, pede que os autores premiados em dinheiro nos anos em que publicou suas obras estornem os valores recebidos para a conta dele. No fundo, é um exagerado, um polemista. Como todo apaixonado.


*Jornalista e poeta, autor de Como no céu / Livro de Visitas (Bertrand Brasil, 2005), entre outros



"Queria ver se Marcel Proust tivesse nascido lá em casa, em 1966... cada um que administre a madeleine que lhe cabe."


"O amor é mais letal que a vida. Não promete apenas a morte. É muito mais do que isso."


"Não sou um executivo de letras. Não estou aqui para continuar a obra de ninguém e não preciso dar tapinhas nas costas de ninguém para ver meu belo rostinho publicado nos jornais."


"Os palavrões estão ali cumprindo uma função. Aliás, não existem palavrões nos meus livros. Existem - repito - necessidades."



"QUERO ME LIVRAR DESSES FANTASMAS"

Entrevista: Marcelo Mirisola, escritor




Joana a contragosto, romance de Marcelo Mirisola. Lançamento da Editora Record 187 páginas, R$ 27,90



Cultura - Já é notório seu talento para o insulto, mas agora descobre-se seu talento para o elogio do amor?

Marcelo Mirisola - Fabrício, meu caro. Tenho talento para escrever (o que não é pouco, concorda?). Outro dia me surpreendi elogiando a invasão americana no Iraque. O elogio era tão bem fundamentado que até eu me convenci. Isso - admito - é um perigo, uma irresponsabilidade. Mas no final das contas o que vale é a diversão de poder transformar um bom argumento em ficção. Às vezes - infelizmente - eu não me divirto tanto. E é aí que a coisa pega. Em primeiro lugar porque o estopim já foi detonado (falo da febre de escrever...) e, depois, porque tenho que manter a situação sob controle. Isto é, tenho que arrumar um bom pretexto para me abandonar. Para, enfim, não acreditar 100% naquilo em que eu mesmo engendrei. O nome disso é ficção. Não é nada fácil, dá um trabalhão danado e pode cansar mais do que uma entrevista. O pior de tudo é que sou pessimamente remunerado.


Cultura - Joana a contragosto não é contaminado, como nos livros anteriores, de referências a programas de televisão e de música da década de 70 e 80. É seu livro mais ficcional nesse sentido de se afastar da indústria cultural?

Mirisola - O que você chama de "indústria cultural" nada mais é do que um dado. Uma ferramenta de trabalho a serviço de um enredo. Em O azul do filho morto havia a necessidade da televisão ligada, do programa do Bolinha e de outros eletrodomésticos e mandiopans afins. Vale notar que toda essa parafernália apenas ajuda na condução do livro, de maneira alguma atrapalha o andamento da história e jamais pode ser confundida com algo datado. A mesma coisa vale para os palavrões. Estão ali cumprindo uma função. Aliás, não existem palavrões nos meus livros. Existem - repito - necessidades. Mas como eu dizia, queria ver se Marcel Proust tivesse nascido lá em casa, em 1966... cada um que administre a madeleine que lhe cabe. Bem, no caso de Joana, as necessidades eram outras. A discussão era mais eloqüente. Tinha que lidar com o confronto entre vida e arte. Tinha que falar de amor e não podia ser derramado... ao mesmo tempo tinha que abaixar a guarda e dar um xeque-mate no meu narrador. Meu estilo estava em risco, e ainda por cima Joana era mais real na minha ficção do que jamais poderia ter sido em qualquer situação vivida de fato. Eu era o médico e o paciente. Emagreci 15 quilos e terminei o romance em exatos nove meses. Se você acha pouco, Fabrício, lhe digo que teve muito mais. O problema é que quero me livrar desses fantasmas, e não consigo. O sobrenatural ainda está me pedindo explicações... e eu não sei como lidar, não sei o que dizer. Estou cansado, meu amigo. Na verdade, gostaria que ela, Joana, fosse mesmo uma mulher de verdade (de fé, uma companhia a toda prova) e que estivesse aqui ao meu lado para o que der e vier. Mas não tenho nada, nada, nada.


Cultura - Como o personagem, você já recebeu um pé-na-bunda de alguma namorada?

Mirisola - Quem não levou? Mas isso não é importante. Tanto não é importante que antes havia levado e depois levei outros mais doloridos que não viraram livros. O livro é resultado de uma escolha. E ninguém é louco de deliberadamente escolher se arrebentar para escrever um livro. A gente simplesmente se arrebenta - e aí não podemos falar em "protagonistas", entende?


Cultura - Sua obra anterior, Notas da arrebentação, no formato de correspondência, ajudou na elaboração de Joana a contragosto, uma longa, dolorida e terrível carta de amor a uma mulher?

Mirisola - Acho que não. O Notas da arrebentação foi uma oportunidade que eu tive de juntar uns textos que estavam espalhados por aí em jornais, revistas e malfadadas antologias. Eu queria "salvar" principalmente um conto chamado Rio pantográfico. O melhor conto que escrevi até hoje. Esse conto não merecia ser confundido com as políticas do organizador da antologia. Se você quer mesmo saber, vou lhe dizer uma coisa: me senti aliviado por ter tirado esse conto das garras do Nelson de Oliveira. Quando a antologia foi duramente criticada, ele não bancou a idéia. Disse que nós, da tal "Geração 90", éramos continuadores das obras de Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão e Márcia Denser. Disse que procurávamos "a excelência do texto" e mijou feio para trás. Eu me senti profundamente ofendido. Não sou um executivo de letras. Não estou aqui para continuar a obra de ninguém e não preciso dar tapinhas nas costas de ninguém para ver meu belo rostinho publicado nos jornais. Também não escrevo de graça em lugar nenhum. Enfim, entrei de gaiato nessa barca furada por delicadeza. Quis ser gentil, aceitei o convite e quebrei a cara.


Cultura - Você já disse que os autores que receberam prêmio em detrimento de seus livros deveriam depositar o dinheiro em sua conta. Lembro que tornou público o número de sua conta. Sente-se excluído dos prêmios literários?

Mirisola - Completamente. E não custa nada repetir o número da conta: Itaú, agência 0189, conta corrente 48227-6 . Será que esses escribas não vão se ligar nunca?


Cultura - Quem Marcelo Mirisola gostaria de ser por um dia?

Mirisola - Por uma noite: queria ser o personagem M. M. do Joana a contragosto.


Cultura - É estranho pensar que é o segundo livro que fala de seus filhos mortos, incluindo O azul do filho morto. Em Joana a contragosto, o narrador lamenta que sua transa sem camisinha tenha sido apagada pela pílula do dia seguinte e se vê pai de uma indiazinha de olhos amendoados que não nasceu. Nossa, cria uma nova paternidade: a de fantasmas?

Mirisola - Muito triste isso, hein, Fabrício? Muito bonito também.


Cultura - O personagem contrai o vírus HIV e não culpa a mulher. Vira um detalhe secundário na trama. O amor torna a vida inverossímil?

Mirisola - O amor é mais letal que a vida. Não promete apenas a morte. É muito mais do que isso. A Joana do livro acabou com a inverosimilhança do narrador. Também levou todos os anticorpos, os paradoxos, a alma, o cérebro dele, não deixou nada. Sobraram os fantasmas. Uma vida que se exauriu em função de uma arte estéril, maldita.


Cultura - Pela condução das suas obras na primeira pessoa, muitos leitores confundem a opinião de seus personagens com a do escritor. Mirisola é tão machista assim, tão trash, tão inconformado e cínico? O que há de diferente entre os dois?

Mirisola - As respostas acima, por exemplo.


Cultura - Percebo que seu alter ego encontrou uma mulher à altura da maldade dele. "Ela me devolveu a mim mesmo." Houve um processo de conscientização da figura masculina a partir do narciso feminino?

Mirisola - Houve um processo de destruição plena da figura masculina. Que curiosamente também destrói a feminina. Terra arrasada.


Cultura - Qual foi o erro do seu personagem para não conquistar Joana? O jogo limpo?

Mirisola - Foi ter escrito o livro (e aqui faço questão de misturar as coisas).


Cultura - Nunca a poesia entrou com essa intensidade na veia de sua narrativa, misturando ternura e naufrágio. Se Notas da arrebentação tinha o subtítulo Menos poesia, Joana poderia ter o de Mais poesia. Você mostra finalmente uma feição lírica?

Mirisola - Não tinha outra saída, Fabrício. O lirismo era a única saída para o meu narrador. Talvez a última.


Cultura - Seus livros seguem um projeto ou são feitos por uma escrita inconsciente, visceral, em que nem o escritor conhece o final, tipo "cada vez que procuro entender, a coisa piora"?

Mirisola - Pelo contrário. Mantenho as rédeas curtas. Sei exatamente o que pretendo e aonde quero chegar. Não desejo fazer concorrência a Zibia Gasparetto. Tenho um estilo a preservar, afinal de contas.


Cultura - Você já realizou parcerias com Caco Galhardo (O banquete). É possível trabalhar em conjunto com outro autor sem perder a individualidade do estilo?

Mirisola - Perfeitamente, e além disso dá para se divertir um bocado. O Caco Galhardo é um sujeito sintonizado com aquilo que eu chamo de "inhaca" da classe média. Ele me mandou umas 300 gostosas da sua coleção de Pin Ups. Nunca tive tantas mulheres em casa. Escrevia uma por dia, e o resultado foi muito bom. Em 30 dias tinha o livro pronto. Tenho notícias de uns malucos por aí que se masturbam com o livro. Espero que as mulheres desenhadas pelo Caco sejam as inspiradoras. Meu texto - até onde eu sei - é às vezes esquisito, às vezes melancólico, às vezes demente. Às vezes lírico. Se isso dá tesão em alguém, eu só posso achar muito estranho, e lamentar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário