quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/22/2006 09:05:00 AM

Jornal Zero Hora, Segundo Caderno

Porto Alegre (RS), 22/02/2006 Edição nº 14790

Literatura


APRENDENDO COM O FEITICEIRO

Da série Mario Quintana e seus leitores


Fabrício Carpinejar




Foto(s): Dulce Helfer, Banco de Dados/ZH



Alquimista, termo que ganhou força com Paulo Coelho, é café pequeno para um feiticeiro como Mario Quintana (1906 - 1994). Um feiticeiro não depende do ilusionismo espiritual para convencer. Mario Quintana põe seu ofício às claras. Foi um dos escritores que mais poetizou o poema.


O mundo partia dele mesmo. O autor era o mundo. Exerce um narcisismo solidário. É seu assunto predileto. Poemas em primeira pessoa, com a bagagem de ter estado dentro da alma grande parte do seu tempo. Esbraveja e ama seus poemas com igual força. Exerce o papel de vítima e carrasco. Chama suas criações de repente de pobrezinhas com ironia e autocrítica e logo as deslumbra como "milagres sem querer".


"Ai de mim. Ai de mim", quantas vezes suspirou Quintana com autopiedade, por não conseguir empreender outra coisa a não ser escrever? Mas não se engane. Ele exala um coitadismo próprio do sedutor, a demonstrar carência para afirmar sensibilidade e compreensão raras.


Em O poema, de O aprendiz do feiticeiro (1950), celebra o verso com as duas principais pulsações emocionais que caracterizam sua trajetória: nostalgia e verdade dolorida.


Antevê a escrita como necessidade, não como uma escolha e opção de vida. São feridas, sede e angústia que não se repartem. Um mistério que não será abolido e que permanece maior do que a clareza arbitrária do autor. O poema depende da penumbra e da insuficiência. O poema é o poeta se desvendando.


Quintana extrai da banalidade, caçar um copo de água de noite, o seu extrato metafísico de busca por um sentido para a linguagem. Tem uma preferência pelos diminutivos, como se fosse uma criança apontando sua nova descoberta. "A pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna" reaparecerá mais adiante em Os esconderijos do tempo (1980) na forma de "as moedinhas de luz perdidas na grama de teus olhos verdes". A obsessão e a recorrência fazem seu estilo.


Há um manto místico cobrindo o texto. O escritor aceita a natureza inexplicável do poema tentando explicá-la. Mediante o jogo de comparações, uma imagem reforça a outra até se confortar com a sensação de que o poema se fez sozinho.


Aceita a palavra como uma exigência do destino. Tal anunciação bíblica de um anjo. Se o anjo de Drummond diz para ele ser torto e gauche, o anjo de Quintana o adverte da sua tremenda solidão.


Uma bobagem querer que a vida do escritor seja um livro aberto. Aberto deve ficar seu livro em cima da mesa e da história.


O poema


"Um poema como um gole

d'água bebido no escuro.


Como um pobre animal

palpitando ferido.


Como pequenina

moeda de prata

perdida para sempre

[na floresta

noturna.


Um poema sem

outra angústia que a sua misteriosa

[condição de poema.


Triste

Solitário.

Único.

Ferido de mortal beleza."



Do livro O aprendiz de feiticeiro

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