quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/12/2006 12:51:39 AM

MEU QUARTO

Para Suzana

Pintura de Van Gogh


Fabrício Carpinejar






Podemos sair de casa há anos, e o quarto que abandonamos é conservado pelos pais. Não modificam uma vírgula de nossa letra. Não alugam, não fazem reforma, não mudam as estantes, não trocam a pintura, a fechadura e os tapetes. Nós alteramos a infância, não os pais, que em qualquer idade nos enxergarão pequenos. Nos enxergarão como se ainda fosse possível resolver a tristeza e a dor com um colo.


Quando voltamos para residência familiar, separados ou exilados, desempregados ou desencantados, descobrimos o quanto eles nos amam. Amam a criança que fomos. Nenhuma boneca foi jogada fora, enfileiradas pelo tamanho. Nenhum carinho desperdiçado. As canetas coloridas da escola guardam tinta. As agendas estão na gaveta, com as fotos dos amigos e as primeiras confidências. Os pôsteres das bandas de rock, que hoje nem fazem sentido, permanecem atrás da porta branca. As revistas proibidas seguem escondidas em uma madeira solta debaixo da cama. A mesma cômoda onde escrevemos cartas de amor e varamos a noite estudando para provas. O mesmo abajur preto, com problemas de contato. O mesmo enxoval, como se tivéssemos passado um longo final de semana fora (um final de semana que pode ter durado vinte anos), e retornássemos de uma hora para outra. O mesmo travesseiro com cheiro de nosso pijama. Os mesmos cabides e espelho. Até a pantufa nos aguarda, com a plumagem desalinhada de ovelha.


Tudo em ordem e recente, a apagar que lacramos a porta com um adeus, a esquecer que viramos o rosto para sermos felizes com nossas famílias. Os filhos são dramáticos e se despedem com adeus, mas vão voltar e voltam, mesmo que seja para se despedir verdadeiramente.


E não é apenas a aparência do quarto que resiste intacta. É o jeito como os pais nos tratam, sem censura e castigo, sem julgar as escolhas e precipitar arrependimentos. Em silêncio, a mãe fará o bolo de laranja predileto. Ruidoso, o pai perguntará se não queremos caminhar com ele. Ao sair, a mãe dirá para não esquecer o casaco, o pai avisará para nos cuidar e voltar cedo. O tratamento é idêntico, insuportavelmente idêntico à adolescência. A velhice não ameaça o amor.


Apesar de confiarmos que somos outros, os pais continuam nossa vida. Não interessa a cor de cabelo, a tatuagem, o piercing, a cicatriz, a ferida, a alegria ressentida, os fios grisalhos e os divórcios, os pais acreditam que somos os mesmos. Somos as crianças que eles deixaram crescer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário