quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/15/2006 06:19:27 PM

A ESTRADA NO MEU QUINTAL

Pintura de Antoni Tàpies


Fabrício Carpinejar






Lavar o carro para o homem é como chorar assistindo filmes. Um modo de se emocionar e não dar na vista. Um modo de ser mais do que um homem solitário, e sim quatro passageiros e um motorista ao mesmo tempo.


Talvez as mulheres não entendam o que significa. É a maquiagem masculina.


Eu me sentia adulto quando meu pai me convidava para lavar o carro. Ainda por cima ganhava banho grátis de mangueira.


Podia entrar dentro do automóvel e brincar com o volante. Ele me alcançava uma flanela e ensaboávamos as rodas, as janelas e a frente. Nossas mãos se confundiam, rápidos pára-brisas. O chuvisco frio arrepiava as canelas. Andando em círculos, nos esbarrávamos e ríamos da ternura involuntária.


Uma das raras cenas em que conversávamos sobre o que viesse à cabeça, sem censura e medo. Meu pai era um na mesa e outro lavando o carro. O primeiro severo; o segundo, amoroso e leal como a água correndo. Meu pai agia como avô, desobrigado dos castigos e das reprimendas. Ele me ouvia com uma atenção absoluta, como se fosse meu professor e eu esperasse alguma nota no final do trimestre.


Naquela época, não havia mordomias como lavagem a jato ou lavagem expressa. Não se transferia o encargo para postos ou flanelinhas. Lavar o carro acontecia em casa, pessoal como escova de dente, certo como confissão antes da eucaristia. Eu e o pai levávamos uma hora para escovar os bancos (sem aspirador de pó), tirar a espuma, passar jornal nos vidros e encerar. Ele me fazia acreditar que era dono do carro tanto quanto ele. Ainda me elogiava pela dedicação e eu retribuía com o brilho. Nunca vi homens se elogiando com tamanha franqueza como nesta circunstância. Eles se desnudam diante do motor e não se preocupam em mostrar virilidade.


O carro era o cachorro da família, abanava o pêlo depois do ritual. Sacudia os fios e logo saía correndo pela terra e ruas para se sujar e reencontrar o cheiro.


A história de minha família é a história de seus carros. Não se trocava o veículo todo ano, contei com dois na infância, curtidos, surrados e usados até estragar na estrada: um Corcel amarelo e uma Belina branca. Meu pai tinha um apreço desmedido por eles. Um risco na lataria o chateava por semanas. Depois da janta, escapava de mansinho e apalpava o pequeno estrago, só detectável por ele, mais ninguém. Não era nada, mas ele identificava a distância, tal ardência de cicatriz no próprio rosto. O carro doía nele.


Como não arrulhar a boca quando o pai chegava no portão buzinando, de surpresa, com o carro novo? E despencávamos pelas escadas para o primeiro passeio, os estofados engomados exalando o plástico recém-tirado. Disputava com os irmãos quem entraria primeiro. Olhar as janelas para ser olhado, a exemplo de manequins vivos nas vitrines. Orgulhosos, acenávamos a qualquer um, com o único propósito de se exibir. A mãe apertava os botões de seu vestido com espanto e desconforto (consciente das dificuldades financeiras que viriam), em seguida cedia ao desatino ruidoso e amarrava um lenço no pescoço de atriz de cinema. Ficava absurdamente bonita, sua pinta como uma segunda boca. Cantávamos juntos, desafinados, com a alegria destreinada. Não previa as adversidades, não existiam em minha imaginação. Criança se importa em viajar, de modo nenhum com o destino. Não cogitava a loucura paterna de tomar uma dívida além do seu salário, não aventava a hipótese de que ele não dispunha de poupança para saldar o negócio. Pensava que o carro era nosso na hora, alheio as quarenta e oito prestações e do esforço de superar a despesa-extra.


Hoje convido meu filho a lavar o carro. Eu já fui ele.

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