quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/10/2005 11:35:15 AM

VOLTO DIA 20

Gravura de Mark Gertler


Fabrício Carpinejar





Não sei se a minha infância foi feliz nela ou depois dela. Ou será que a infância é feliz porque o resto fica bem mais difícil? A saudade alegra. O que lembro me conforta. A lembrança esquece a dor e fica com a lembrança. Nas viagens de ônibus de pequeno, gostava mais de estar indo do que chegar. Lia todas as placas e letreiros pelo caminho. Ainda recordo o cheiro do estofado vermelho. Cheiro de hortelã. O cheiro da despedida e da chegada, quando rumava para a casa dos avós no interior. Não perguntava "quanto tempo falta?", perguntava "quanto tempo eu tinha?". Em trânsito, recebia suco, refrigerante e bolachas. Em casa, não havia mordomias. Viajar era ter o colo da mãe por perto e os ouvidos da estrada. Abria a janela para engolir vento e cuspia de volta, não agüentava o peso do ar. O peso da serra, das curvas, do verde crepitando. O peso da altura. Porto Alegre ao longe. Ia subindo para o céu, sem me importar com o tamanho da queda. O rio Muçum serpeava, marrom, como meu primeiro cachorro. O rio tinha sardas e abanava o rabo antes de entrar em Guaporé. A infância assustava, como toda alegria assusta. Só depois de muito tempo é que estamos preparados para enxergar pela primeira vez o que já vimos. Com a saudade não há distância, a vida surge simples como levantar a colher da córnea à boca. Descomplicada, sem conspiração e vozes cochichando estradas secundárias. Meu bairro comportava a igreja, o supermercado, o cinema e a sorveteria. O mundo estava completo desse jeito. No cinema Ritz, assisti meu primeiro filme: Marcelino Pão e Vinho. A sala escureceu e disse para a irmã Carla que não queria dormir, ainda era dia. Estava acreditando que era mais uma sesta planejada e forçada pelos pais. Ela pediu silêncio e não sussurrei nenhum som depois da reprimenda. Deus aparecia preso no assoalho, como um pássaro esfolado, a receber pão e água. Sei que chorei e não combinava comer bala azedinha com o sofrimento Dele. Não me explicaram o filme, não perguntei. A televisão se apequenou depois do cinema. A televisão com os santos em cima. Pequena como meus olhos, como as bolitas que jogava na escola, procurando abrir a vala com o arremesso. Abrir a cova do riso. Cresci porque meus olhos não suportaram sozinhos tanta infância. Acho que a gente não cresce, desiste. Quantas vezes desisti sem me despedir? Desistir é voltar com ânsias do começo. É na desistência que aprendemos a amar desobrigados.

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