quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/14/2005 11:22:55 AM

PÁSSAROS COMEM NA MÃO

Gravura de Giacometti


Fabrício Carpinejar





A minha dor, eu sei resolver. Ainda que seja a custo alto, sei resolver. Pode ser com um calmante, um trabalho físico, um desabafo. Pode ser mexendo na horta, organizando as roupas no armário, limpando a casa, xingando Deus, sei resolver. Ainda que demore, mas resolvo. O que não sei resolver é a dor do outro. Fico mudo, meu braço sobra, minha mão falta, minha boca treme algum vento sem força. A dor do outro não se comunica. Não dá não tira emprego. A dor do outro me isola. Tento uma brecha para falar, porém sinto-me intruso, incômodo, solteiro. Como uma casa em reforma. Toda dor só é compreensível no idioma da dor. Quem está fora não entende, não tem razão, não alcança sentido. A dor não busca conselhos, a dor busca a pele para colocar por cima, busca cicatrizar a ferrugem e a maresia. A dor do outro é pedalar com a respiração. A dor do outro me desfalca, me devassa, me faz duvidar que podia ouvir. A dor do outro é a minha dor mais pessoal, porque é indiferente a minha própria dor. A dor do outro é uma parada de ônibus sem ônibus porvir. Uma parada de ônibus para sentar e não ir. A dor do outro fica no lugar da dor, não suporta um passo além do círculo de sua lembrança fixa. A dor do outro tem a altura de um grito que não é dado para não desperdiçar a dor. A dor do outro não ri porque séria chega mais rápida ao fim da dor. A dor do outro não se empresta, é dor de osso, dor que não se enxerga de dia e não se enxerga de noite. A dor do outro é neblina com a roupa presa nos galhos. A dor do outro é uma escada sem mureta, sem apoio. Uma escada desigual como a cintura ao dormir. A dor do outro me esconde, me segrega, me empurra com os cotovelos para onde não desejava voltar. A dor do outro me pede ajuda para não ajudar. É severa como uma verdade antes da morte, severa como uma mentira depois da morte. A dor do outro é banal, irrisória e tola para os que não mergulharam em dor. A dor do outro é hipocondríaca e carente aos que não enterraram seus pés ao correr. A dor do outro é discreta pois os sons não se encontram na pronúncia. A dor do outro tarda para retornar a ligação. A dor do outro parafusa a lâmpada para quebrar. A dor do outro não usa agenda, não recorre ao diário, a dor do outro é escrita esquecida. Não se escreve na dor, se escreve para manter distância dela. A dor do outro não encontra dentes para mastigar. A dor do outro se mastiga com a língua. A dor do outro não consulta horóscopo, não requer meteorologia, a dor do outro não muda, é igual ao que não se entende. A dor do outro é caseira, pois sair de casa é levar a casa. A dor do outro é destelhada. A dor do outro é uma árvore avessa, uma alegria avessa, uma água que já estava na boca. A minha dor, eu resolvo. A dor do outro, não sei onde colocar, onde me colocar. Faço como minha avó Elisa. Quando alguém recusava um abraço, ela pedia para devolver. Devolver o abraço é a dor do outro.

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