quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/8/2006 04:36:59 PM

MEU RELÓGIO SÃO OS RUÍDOS DE CASA

Imagem Fundação Joan Brossa


Fabrício Carpinejar






O amanhecer me liberta. Tudo está por ser feito. O entardecer me prende. O pôr-do-sol é um quarador cheio de roupas a cuidar.


Eu dormi na minha infância em casa de madeira. A fresta me dizia as horas pela luminosidade. As tábuas do piso avisavam quem já estava acordado. Conhecíamos os familiares pelo peso dos passos, pelo jeito de abrir as portas, pela força que fechavam os armários. Suaves e cerimoniosos. Apressados e bruscos. Minha avó andava de meias para não despertar os netos, minha mãe arrastava chinelos com ânsia de festa, meu pai se espreguiçava com seus sapatos de bico fino. As gavetas rangiam documentos importantes.


Do quarto, era possível deduzir quantas chamas estavam acesas na boca do fogão. Do quarto, era possível deduzir o momento em que a jarra do leite fora posta na mesa. Do quarto, era possível deduzir a xícara aterrissando no prato. Antevia inclusive o número de colheradas de açúcar. Os barulhos me confortavam. Nada era mais delicioso do que acordar com cheiro de café e de pão quente e escutar o som nítido da peça povoada ao lado. Acordava alegre porque alguém me esperava para conversar. O dia não dependia só de mim.


Magia semelhante acontecia com o som da máquina de escrever no escritório. Sem abrir a porta, podia reconhecer a criatividade pela rapidez das teclas e a falta de idéias pela lentidão entre um movimento e outro. Quando entusiasmadas, as mãos caminhavam com a pressão dos pés. Máquina de escrever se assemelhava a um tambor, o rugido chamava a letra. Assim como o latido me fazia adivinhar o tamanho do quintal.


Não sou das casas silenciosas, acarpetadas. Sou do ruído, do vazamento, da movimentação da cozinha. Quando se entra em um bosque, exclamamos: - Que silêncio. Mas não pretendemos falar que não se ouve nada. A calma encontrada não abole o linguajar dos animais. Em qualquer mata, os barulhos dos bichos não incomodam. São barulhos necessários, barulhos vivos, barulhos da paz, barulhos da convivência.


Não vejo a voz como proibição da tranqüilidade. Tento ser sempre desse jeito: o corpo como piso de madeira, para escutar os pés de todos que amo se movimentando enquanto durmo, ou uma máquina de escrever, em que os dedos, como pássaros, catam milhos.


Sonhamos melhor com a certeza da companhia.

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