quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/3/2006 01:13:18 PM

UM CAFÉ PARA DOIS

Pintura de Man Ray


Fabrício Carpinejar





O amor é uma térmica. Não entendo de onde partiu essa comparação, mas ela me contentou prontamente. Cheguei a suspirar depois de escrevê-la. O amor é uma térmica. Desde o jardim de infância, a térmica é quase como meu boneco, meu vizinho, meu confidente. Minha primeira térmica era branca, centrada na merendeira, e conduzia o leite achocolatado. Abrir sua tampa no recreio produzia o melhor barulho da escola. Melhor do que a sineta. Ela gritava no terceiro giro e lavava meu rosto com seus vapores. Para quem tinha asma, o jato não deixava de ser uma nebulização. A térmica resumia o ponto alto do lanche. Um cofre que dependia do conhecimento antecipado do seu dono, de mãos que precisavam antever as voltas para não sofrer queimaduras. Uma valise de criança, uma outra boca miúda. A térmica não troca seus dentes de leite. Significava meu documento de menino, pessoal como o uniforme com meu nome bordado.


Uma térmica é como o amor, aquece o que ficou guardado, não deixa esmorecer a espuma, aviva o gosto do que passou. Seus movimentos de abrir revelam temperamentos. O preguiçoso tentará esvaziar o líquido com uma desenroscada, e terá que repetir. O esperançoso vai testar uma ou duas vezes antes de encontrar o fluxo ideal. O rançoso molhará toda a mesa.


Uma térmica é como o amor, feita para distribuir porções generosas ao dia. Não traz a ração de uma xícara, mas a bandeja inteira. Além de tudo, é fiel como o mel no pão. Fica impregnada do cheiro por dentro. Na mesma semana, não recebe café, água quente e leite. É um ou outro, escolhe cuidadosa o seu par, casa por toda a vida com seu conteúdo. A térmica dança coladinha ao corpo do líquido. Dança levantando o pescoço. Pede escamas e o peixe das mãos. Pede o salto do rio e das pedras redondas. Pede a altura violenta da garganta.


É com tristeza que fui voto vencido na substituição da térmica vermelha do serviço por uma máquina de café. A térmica permitia conversas improváveis, recebia visitas, chamava para perto, diminuía a sala. Não excluía quem tem daquele que não tem, quem pode daquele que não pode.


A térmica é como o amor. Assobia na hora de falar, beija aos goles. Tinge a língua com guache. Escolta nossa sede e gula até o fim sem esmolar moedas. Pode ser até pior do que um café expresso, mas acumula doçura e presságios. Acumula a infância.


Não desejo ser cremado. Guarde-me na térmica. Guarde meu amor na térmica.

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