quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/2/2006 10:50:49 AM

QUANTAS PINTAS EM MINHAS COSTAS?

Gravura de Man Ray


Fabrício Carpinejar







Estava dormindo de costas. Acordei com meu filho contando minhas pintas.


Ele gritava:

- Mais uma, mais uma.


Nos cálculos dele, tenho vinte e duas manchas. Não sei se ele parou de contar porque não sabe o resto dos números ou realmente achou vinte e duas. Não poderia me emocionar mais. Um filho aprendendo matemática em meu dorso, cuidando de mim, importando-se em adivinhar o que já vivi. Havia um calendário que superava as previsões. Minha pele chovia canivetes.


Nem sempre fixamos o tempo por aquilo que está na carne. Nossa alegria costuma ser limitada a um horário, a uma realização, a uma situação de fora. Não a um sentido maior de convivência, de descoberta pessoal. Confundimos estar alegre com ser alegre. E o ano não muda se acreditarmos que alguma coisa deve acontecer para ser feliz. Nada precisa acontecer para que a felicidade venha. Ela já deveria estar dentro despertando a delicadeza. Não pode ser condicionada a um plano profissional, emocional e de saúde. Não será a lentilha ou a roupa branca que determinarão a conduta. O que passou não acabou - ainda é. Ciscar para trás pode ser mais verdadeiro do que andar para frente.


Aceita-se a ilusão de que, ao apagar o ano passado, eliminam-se os problemas. Assinamos embaixo o pedido de lobotomia. Quantas virtudes e lembranças boas vão para o ralo? Confia-se que zerando o placar é mais fácil entrar em vantagem. A desmemória gera apenas a repetição. E uma repetição cansada e fingida da novidade. Não é necessário nascer de novo para ter chances. É necessário morrer várias vezes para ter chances. Esquecemos que a primeira refeição do ano costuma ser as sobras do jantar. É possível enganar o coração, não o estômago.


Observo uma arrogância em relação à vida. Como se não suportássemos a idéia de que a vida manda na gente. Se o roteiro não segue o que planejamos, começamos a lamentar e nos entristecer. Abalados pela idéia de que não foi o que queríamos, não se cogita reagir. Somos fracassos prematuros, com receio de exercitar a diferença. E a curiosidade, onde se coloca? E o improviso? Será que não falta um pouco de humildade para aceitar que ninguém vive solitariamente, que ninguém tem o destino pronto. Não pretendo disfarçar a minha solidão com o nome de "independência".


Quando resumimos o ano, ele se torna menor do que um dia. Viver é intimidade, não intimação. Viver um dia de cada vez tornará o ano mais longo. Viver uma pinta de cada vez. Observar o que ficou nas costas.

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