quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/3/2005 09:51:07 AM

OLHANDO DE COSTAS


Fabrício Carpinejar





Não se voa olhando para trás, ciscando as asas. Eu vôo ou vou assim mesmo sem voar. Um poema que não chama para fora não tem nada dentro. Enquanto permaneço com 70 quilos e 1, 76 m, o desejo aumenta o corpo da linguagem. O desejo não depende da pele para sangrar. Não me pergunte o que já sei. Tampouco quero saber de mim, sou um assunto enjoado há 32 anos. Há muito deixei de ser meu tema preferido. Quando jovem falava só de mim. Percebi que me enganava. Quando adulto, só falava mal dos outros que é uma forma de continuar falando só de mim. O óbvio alucina. A grama mascada pelo cavalo é mais influente do que a mescalina. Basta olhar o jeito como ele corre depois. A realidade é um alucinógeno. Quem vive fora da realidade é que está sóbrio. Em toda a igreja da infância, havia uma escadaria enorme para subir. Igreja sem escadaria não fazia sentido. Deus não admite atalhos. Deus não tem costas, o que deve ser um incômodo. Ficar sempre de frente diante dos problemas. Custava subir para Deus, mas descer Deus era fácil. O vento abelhava nos ouvidos. Quando tenho água na boca tenho sede. A vida não me apresentou para a família. Não confio no acaso, mas em diversas vidas dentro do ocaso. Seria diferente ao tomar o trem às 7h50 e não às 8h15? Seria diferente se não entrasse cedo na universidade? Se eu não tivesse passado naquele bar e visto minha mulher dançando com um estranho? É cômodo pensar que escolho a realidade errada e existe uma mais favorável se desdobrando de forma paralela. É muito luxo e egocentrismo dividir a conta com o que não aconteceu. Não é assim: nenhuma realidade se cumpre sem o corpo. Ninguém iria salvar seu filho se tivesse lá, no momento da perda. Ninguém iria salvar um amor se estivesse conversado mais. Ninguém teria compreendido o pai se nascesse antes. Ninguém estaria a salvo dos complexos se guardasse a memória dos primeiros anos. A vivência que fugiu não teve coragem de ficar. O real não multiplica, unifica. Aceitar o que se passou é preferível do que passar em branco. Não mudaria nada das minhas dores. Elas me ensinaram a doer menos. As possibilidades continuam a existir ainda que não escolhidas. Não morrem com o tempo. O que não fiz hoje poderá me fazer mais tarde. Não confio no destino para confiar na falta de destino. Ao mesmo tempo, se alguém está feliz não cabe questionar o motivo da felicidade. A pergunta diminui a alegria. Meus olhos fecham a cada dois segundos. As pálpebras lubrificam, ainda que não chore. Um segundo é perdido em dois segundos visíveis. Quantas horas da minha história enxerguei de olhos fechados? Um terço, no mínimo. Uma década até agora. Alguma coisa devo perder. Ou ganhar. Se aquilo que não escolhi não será lembrado, aquilo que não escolhi será imaginado. A memória não admite ser contrariada. A imaginação é a contradição necessária, contrapõe-se à biografia para serenar sua arrogância. Imaginar é treinar antes do jogo. Eu jogo melhor no treino.

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