quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/6/2005 10:13:56 AM

DEUS TEM MUITOS NOMES E NENHUM APELIDO

Gravuras de Peter Lanyon


Fabrício Carpinejar





Barulhos que fazem parte do meu silêncio. Barulhos necessários, que me acalmam e me condenam a ouvir. Barulhos como fundo de vozes, não vozes de fundos. Da cadeira do barbeiro. Da vassoura recolhendo as mechas. Do zíper da Bíblia. Do reumatismo da geladeira. Da lâmpada falhando. Do trem, único varal elétrico onde os pássaros não pousam. Do ferro de passar entre os botões. Dos fósforos úmidos. Da esteira das malas. Do giz quebrando no quadro negro. Da grama amanhecida. Das sandálias chutando o vento. Das pernas cruzadas para o café. Das venezianas e seu coração de nozes. Das gavetas e sua milícia de guardados. Da conspiração de roupas do armário. Do encontro das cordas com a roldana de um barco. Da resistência do livro antigo. Do filme rebobinando. Da rugosidade do lápis. Das abelhas e seus cílios de asas. Da respiração vaporosa dos filhos. Da boca de minha mulher antes das dúvidas. Das calhas fazendo corrida. Do anzol serpeando na água. Dos cachorros desidratando a terra. Dos gatos em telhas soltas. Das laranjas fermentando o pátio. Dos goles dos pés no piso de madeira. Da árvore quando se espreguiça. Do sabiá fazendo costura para fora. Das mãos dispersas no cinema. Das mãos concentradas nos cabelos. Do fogo adolescente da lamparina. Do fogo infantil de uma vela. Do fogo adulto de uma lareira. Do cristal hiperativo do lustre. Dos sapatos sem cadarços. De lenha empilhada. Das cobertas transformadas em travesseiros na janela. Do suspiro a esmo. Do pão a separar os dentes. Do mel escorrendo da faca. Do estômago quando se deita em um colo. Da espuma parada no balde. Dos ciscos nas portas de correr. Da tristeza incurável. Da agulha no disco de vinil. Do telefone no domingo. Da alegria incurável. Do esforço inútil de sentar no mar. Do ajuntamento de formigas em restos de comida. Da cicatriz de vinha na parede. Das oliveiras debruçadas no portão. Dos vasos rachados pelo excesso de cuidados. Do medo puro da noite. Do medo desatento da claridade. Da caixa de jóias e correntes misturadas. Dos brincos viúvos. Dos atalhos enviesados da mata. Da tesoura cortando o caule. Da tosse benigna dos sinos. Da poeira espalhando a estante. Do sopro de arrepio. Das estrelas escamadas. Do degelo dos arbustos. Do início covarde da ponte. Do beijo que se afasta para ler o que escreveu nos lábios.

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