quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/30/2004 07:37:08 PM

INGRATO

Gravura de Giotto



Fabrício Carpinejar







Naquela manhã, o azul não precisava estar no céu nem no mar para sugerir as mãos. O verde não precisava estar na árvore ou na grama para sugerir os pés. Naquela manhã, encontrei minha mãe sentada em uma cadeira de balanço na frente de sua casa. No meio dos arbustos. Como se os arbustos fossem ondas. Ela estava de banho tomado, cabelos ainda molhados e um olhar longevo, cumprido. Não pensava em nada, senti assim. Nunca vi minha mãe não pensar em nada, sem se preocupar em arrumar a casa. Esse era o dia. Perdeu momentaneamente parte da memória e dizia que tudo aconteceu porque lavou os cabelos. Confundi o ato com uma brincadeira, mas não achei riso antes ou depois. Ela caracterizava o lapso como "uma coisa estranha, muita estranha". Falava devagar. A sombra fala devagar. Olhava absoluta o próprio olhar, tal criança que vira as pálpebras para assustar seus colegas. Calma, mansa, serenada, um sinônimo dependia do outro para chegar a algum sentido. Não percebi sua velhice, mas a minha. Ali vi que eu e os meus irmãos envelheceram. Ela já tinha nos sustentado, educado, pago a universidade, feito mais do que podia e não havia nada a corrigir, não havia chinelos ao lado da cama, não havia lençóis para estender, janelas a fechar e toalha a sacudir migalhas. Minha mãe demonstrava uma vontade de ficar só. Uma vontade de sua solidão. Uma vontade de chavear o quarto, que permaneceu aberto com um banquinho todo esse tempo. Sempre era ela que lembrava dos telefones, das tarefas, dos remédios na hora da gripe, dos parentes, dos chás. Agora ela conversava com seu corpo. Seu corpo imenso deslembrado. Não adiantava perguntar qualquer coisa. Tratava-se do momento de responder.



Filho é ingrato. Definitivamente ingrato. Nunca está satisfeito. Acredita que mãe é provedora pela vida inteira, raramente a repara como uma amiga que depende de ajuda, de compreensão, de colo, de conselhos avulsos e atemporais. Todo filho quer ser reconhecido como filho único. Pede favores como se ela não tivesse vida, agenda, desejos que não os seus. Exige, não pede licença. A mãe não cobra devolução, recompensa. É a porta da cozinha, sem campainha. Ela se doa, deixa a si por último. Seus filhos têm irremediável preferência. É a última a se servir, a última a tomar banho, a última a receber presentes, a última a dormir, a última a fazer revisão no médico, a última a saber. Todo filho se imagina primogênito, o mais mimado, o mais dileto. Minha mãe inverteu a pergunta naquela manhã: eu sou a dileta de que filho?



Nenhum respondeu. A maternidade não repousa no sobrenome, nos traços, no molde genético, é um escapulário debaixo da camisa que não se vê. Uma pitanga, onde o caroço é quase do tamanho da fruta.



Minha mãe escolheu um santo para cuidar de cada filho. O meu é São Francisco; o da Carla, Joana D'Arc; o do Rodrigo, João XXIII e o do Miguel, São Sebastião. Ela criou seus filhos com a ajuda dos santos. E suas atitudes foram milagres, anônimas como milagres. Os santos levaram os créditos. Porque o filho é ingrato e esquece aquilo que não saiu dele. E pede novamente como se nada tivesse sido dado. O filho reza unicamente para cobrar, não para agradecer. Acredita que sua mãe é eterna, indestrutível, e não parou para descobrir de que modo ela conseguiu conciliar o trabalho com o mercado com a escola com os amores com os amigos com os pagamentos com as dificuldades com as dores com as alegrias e não parecer ocupada ou cansada em nenhum momento. Como ela fez isso?



A maternidade e a paternidade são um estado de insônia. E não termina em nenhuma idade: conferir se o filho pequeno respira com o espelhinho, aprender a cantar na marra, acordar antes do alarme, aguardar o filho voltar de madrugada das festas e que a agressão da adolescência vire abraço, festejar as vitórias das crianças mais do que a infância pedalava no balanço, intuir os problemas, esclarecer as dúvidas, amparar no isolamento, estreitar o convívio com os colegas, acolher os namorados e namoradas. Os pais são escandalosos de cuidados. Só o filho mesmo para ficar constrangido com o afeto. Porque é ingrato. Todo filho é ingrato, o que ele quer é para ontem e o que chega já é passado.



Naquela manhã, minha mãe esperava um ônibus. O ônibus de seu corpo. Desconhecia pressa. Não necessitava ler o letreiro - decifrava o destino pelo número das letras. Naquela manhã, entre o azul da mão e o verde dos pés, ela nasceu de seu próprio ventre. Os filhos tinham que ao menos ajudá-la a cortar o cordão umbilical. E não duvido que ela não o tenha cortado sozinha. Eles demoram muito, todo filho demora.

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