quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/30/2006 02:54:21 PM

DO LADO DE FORA PARA VOLTAR

Pintura de Antoni Tàpies


Fabrício Carpinejar





Faça um exercício: acorde como se estivesse ido embora. Contorne a casa pelas janelas de fora. Não denuncie seus movimentos, não produza nenhum barulho, sequer o da respiração. Passe pela vidraça do quarto do filho e os veja brincando, mexendo com seus bonecos, conversando com seus espíritos, naquela alegria de alma que as crianças exercitam naturalmente.


Fica com vontade de rir dos diálogos entre o filho e seus guerreiros imaginários. Uma ternura de cócegas na barriga. Percebe que ele usa suas expressões. As pausas parecidas. O franzir dos lábios idêntico. Pensa em dar um susto para abraçá-lo em seguida, mas não pode dizer que está ali. Não pode interrompê-lo. Não pode gritar ou expressar o seu amor.


É um passeio calado como o de um fantasma. Isso vai irritando. Você não suporta ver sem ser visto. Entende que ver sempre foi uma retribuição. Atravesse a casa pelo lado externo, como a vitrine de uma loja. A loja é a sua intimidade. Está fechada, tal domingo. Os mortos não podem comprar seus pertences de volta. Todo dia para quem partiu é um domingo, sem expediente.


Conduza a lembrança para o outro aposento. E enxerga sua filha chorando devagar. Talvez seja por você ou pela lacuna de uma cadeira na mesa. Ela sentava no almoço na sua frente. Observa que o livro que comprou está ao lado dela, aberto no travesseiro. Ela está lendo finalmente. Quer comentar o enredo, e recorda que não pode falar ou amansar as costas dela com seus dedos tortos. Ela chorará até descer na parada do soluço. Ou do grito.


Continua seu percurso pela inexistência. No quarto do casal, sua mulher não abre mais as gavetas e o guarda-roupa. Está sentada na poltrona marrom, onde tantas vezes fizeram amor. O olhar trêmulo de um animal ferido. Deseja alisar seus cabelos de baixo para cima, como um pente sem dentes. Beijar seu pescoço. O pescoço é o ouvido do coração. Apertá-la com a volúpia do cachecol no inverno, que dá três voltas de árvore. Ela nunca esteve triste assim, uma tristeza deserdada, uma tristeza primogênita, longe da possibilidade de irmãos. Lembra de piadas e de gracejos que a faziam descontrair. Ela não o ouvirá. Você está do lado de fora do mundo. Não é capaz de arrumar mais a cama da nudez e de retirar os sapatos do caminho para ela não tropeçar. Ela me xingava quando pisava em meus sapatos pela casa.


A vida está represada e interrompida. Assiste as ruínas. Ruína é o que não é possível mais levantar.


Faça agora o exercício ao contrário. Entenderá que o tempo certo é qualquer tempo. Retorne seus movimentos para trás e proteja com intensidade seus filhos e sua mulher. Não consulte o relógio e a agenda, o sol e as roupas para ter alguma opinião. Fale sem parar, até que eles entendam o quanto você se emociona em falar. Falar é ser ouvido. É a sua segunda chance de ser feliz. Mas você já era feliz. Então, é a primeira chance novamente de ser feliz. Não só na dor que devemos apontar onde dói. E sim na alegria. Minha alegria dói para minha família, de jeitos diferentes.


Compreendo o que o meu pequeno filho me falou ao chegar na praia. O céu e o mar iguais na densidade e na cor. Apertando meu pulso, gritou:


- O mar grudou no céu!


Sim, meu filho, o mar gruda no céu, como eu no corpo de quem amo.

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