quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/7/2004 10:45:05 AM

PORTO ALEGRE

Gravura de Iberê Camargo


Fabrício Carpinejar





Nunca vai nevar em Porto Alegre, apesar dela acreditar em milagres. Se a cidade fosse previsível, não estaria nela. O Guaíba é um engradado de cerveja. De vez em quando alguma garrafa explode com o pôr-do-sol. E o casco espuma. O vento briga com o vento, como dois cães brincando. Há ilhas em sua volta, uma ilha em volta de ilhas. Amo a possibilidade de caminhar pela cidade a esmo. Posso atravessá-la e não estender a mão. Ir do estádio Beira-rio ao Olímpico e não reclamar do cansaço. Dá a certeza que chegarei em casa. Apanho a cidade com o canto do olho. Não é desesperada, atônica, nem alegre demais, afônica. É uma cidade sábia, como alguém que envelhece e não se aposenta. Em Porto Alegre, é possível pedir uma informação fora do guichê, ficar no banco sem parecer desempregado, cochilar no ônibus e ser acordado no ponto final. Não progrediu agredindo, nem retrocedeu censurando. Ficou do jeito que o último morador a deixou. Fruta que é mais gostosa verde. Porto Alegre foi engolida ainda no pé. Cidade baixa, que não serve aos suicidas. Exibicionistas não encontram trapézio nos viadutos. O viaduto é apenas uma criança subindo no muro. Porto Alegre tem um jeito residencial, mesmo no centro. Infantil, como um jóquei que deixa o cavalo crescer em seu lugar. Há mais lendas do que histórias, pelo estranho hábito de transformar em lenda a falta de notícia. Porto Alegre é de um lado ou de outro, não aceita meio-termo. Ou é Inter ou é Grêmio, ou é petista ou antipetista (assim como antes era dividida em trabalhista ou antitrabalhista, getulista ou antigetulista, brizolista ou antibrizolista). As árvores aparecem de forma suficiente a não percebê-las. Não são numerosas, nem reduzidas, são. As nuvens se concentram em shoppings como balões promocionais. A orla é uma bicicleta, a curva de bicicleta - só cabem dois para olhá-la. Porto Alegre é uma cidade sem segunda-feira, começa tudo na terça. São seis dias por semana. Quem nasce em Porto Alegre recebe um dia de desconto. O domingo de sol cheira a churrasco. Cidade que usa pantufas, não chinelo de dedo. Se Porto Alegre quer frio vai para a serra, se quer praia vai ao litoral. Não sofre sozinha. O azul é de azulejo sem peças de reposição. Não se entra em pânico para atravessar a rua. Não se morre de vergonha em Porto Alegre. No máximo, se morre, e isso ainda é discutível. Não se acorda de noite para comprar um maço de cigarro, até as assombrações têm preguiça. O escuro conserva os vaga-lumes. A vida é como ela não poderia ser. Cidade vaidosa do seu passado mais do que seu futuro. Os recados são deixados nas paredes, não na geladeira. As velhas casas usam quadros-negros. As praças surgiram depois das estátuas. Deus é chamado em caso de urgência. Em Porto Alegre, não existe urgência.

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