quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/2/2005 09:30:17 AM

SEPARAÇÃO

Pintura de Philip Guston


Fabrício Carpinejar





Não adianta dizer alguma coisa. Não acredita. Você não acredita mais em mim. Estará me cobrando de madrugada o que não fiz. Estará me olhando sem piscar, tirando a segunda via de meus olhos. Você não acredita mais em mim. Flores ficarão na mesa como um aquário sem iluminação. Não consertaremos o armário, não iremos infiltrar heras nas grades, não envelheceremos juntos. A praia será um terreiro de santo desabitado. Seremos desconhecidos simpáticos, falando do filho para não se separar por inteiro Deixará meus sapatos perto da porta para facilitar, os livros fora da estante, as camisas empilhadas na cadeira. Não dormirá, não comerá, a não ser a raiva. A raiva de me devorar pelo ódio, depois de ter me devorado pelo amor. Agora chupa um por um dos meus ossos com desgosto. A carne é triste e doce. Você não acredita mais em mim. Acredita mais nos pesadelos, no horóscopo, nos cachorros do que em mim. Eu sou a impossibilidade do teu orgulho, de tua fé, de teu romantismo. Você bem que tentou acreditar, foi forte e sóbria no início, mas ainda não havia digerido. Ponho a minha língua em sua boca como uma aspirina e cospe a medicação. Agora você não acredita mais em mim. Posso espernear, desmentir, dissuadir. Posso avisar que se arrependerá. Posso argumentar que não reincidi. Já me condenou a uma primeira chance. Não importa, você sofreu por mim, pela família inteira, mesmo que não tenha acontecido nada depois. Sofreu ao imaginar o sofrimento. Sua dor tornou-se tão precisa e planejada que nem a realidade terá tempo de enfraquecer. Ficará no meio da escada, inquisidora, com as sobrancelhas bruxuleando insetos azuis. Ofenderá séculos em minutos. Os pômulos emagrecerão para evidenciar o pescoço. Puxará as contas do telefone, do cartão, mexerá em minhas gavetas para encontrar a suspeita de que você não acredita mais em mim. O sinal de alerta geral está ligado. Os búzios dizem mais do que as minhas mãos. As cartas dizem mais do que as pintas de meu braço. Você não acredita mais em mim. Corre para se salvar na contramão do meu dorso. Mata-me para se defender. Serei um afogado em seu pulmão. Serei cremado em suas coxas. Serei esfaqueado em seus ouvidos. Você não acredita mais em mim. Peço um último favor, me ensine a chorar. Eu soluço, eu soluço, eu soluço e não há voz, não há água para costurar essa mortalha. Desejava cobrir meus pés e o rosto, para que não me visse morto pela última vez.

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