quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/4/2005 05:59:46 PM

MINHA FILHA SEM MIM

Poema publicado na revista digital Confraria do Vento



Fabrício Carpinejar






Não sei quando a criança pára

de enxergar anjos ou de cumprimentá-los.

Se acontece por uma obediência natural


ao esquecimento, ou só depois?

Para não sofrer com os acidentes do invisível,

já que é demasiado sofrer


com o que se aprende no visível.

Essa é uma resposta que te devo.

Ficamos juntos alguns dias do mês,


as férias, e fico reparando em teus gestos

para descobrir algo do meu temperamento no teu.

Eu não te eduquei,


não te corrigi em seqüência,

sou o pai que vai voltar tarde.

Tudo o que tento ensinar não tem uma segunda


e uma terça-feira para permanecer.

Esquecemos de continuar, de completar

a frase, o assunto e a partitura.


Nossa convivência é feita de inícios,

com a memória diária de que estou ali

e tu estás ali, como duas crianças


regendo uma tempestade.

Te aproximas de mim

a segurar um objeto antigo.



Um objeto antigo que recorda

a casa que não teve. Não descobri

a forma ideal de convivência,


muito menos o que gritar

para chamar tua atenção.

O que desperta tua confiança:


A ordem ou o sussurro?

O riso contido ou desavergonhado?

O choro de frente ou murmúrio abafado?


Na hora em que me beijas,

viras o rosto lentamente,

a escapar da barba.



Herdaste até o medo da barba de tua mãe.

Herdaste os medos dela com lealdade.

Não herdaste meu medo


de não ser compreendido.

Não posso me defender

dos ataques dela,


do que ela possa dizer de mim.

Porque defender é atacar.

Atacar é destruir a casa


em que moras, a vida que tens,

o mundo que desde sempre

reverencias como teu e indivisível.




FABRÍCIO CARPINEJAR, poeta gaúcho, é autor de As Solas do Sol, Um Terno de Pássaros ao Sul, Terceira Sede, Biografia de uma Árvore, Caixa de Sapatos, Cinco Marias e Como no céu/Livro de Visitas. Os poemas aqui publicados fazem parte de seu livro inédito Meu Filho, Minha Filha.

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