quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/20/2005 09:55:55 AM

CARLA

Detalhe de Cézanne


Fabrício Carpinejar





Minha irmã Carla, acho que nunca disse que passei a amar as mulheres a partir de você. Temos quatro anos de diferença e sempre foi um dia entre os nossos nascimentos. Não mais do que um dia, graças a sua coragem de me buscar e não me deixar sozinho com os meus problemas.


Quero hoje lembrar de sua generosidade. É natural esquecer o que aconteceu na infância. Talvez você esqueça pela pressa de trocar de roupa e ir ao trabalho. Pela pressa de arrumar os dois filhos para a escola. Pela pressão dos compromissos.


A irmã mais velha que me defendia dos colegas quando falava errado. A irmã mais velha que me chamava de bonito enquanto o mundo me apontava como extraterrestre. A irmã mais velha que me levava para passear ao lado do namorado e ainda tinha que encontrar um jeito de beijar longe de mim. A irmã que me segurou ao andar de patins. A irmã que contestou o casamento, saiu de casa para morar com namorado, abriu a liberdade para cada um dos irmãos depois. A irmã que corrigia meus temas de matemática. A irmã que ligava o som alto na sala e me botava a dançar para não fazer feio diante das meninas.


A irmã que organizou minha única festa de aniversário aos amigos. A irmã que eu chamava de Penélope Charmosa e que a salvava ao vê-la em perigo. A irmã que foi meu pai de vez em quando e foi minha mãe de vez em quando e me ensinou a dirigir. A irmã que era linda na foto e fora da foto. A irmã que emagrecia para a praia. A irmã que poderia ser miss com um pouco mais de altura. A irmã que passou no primeiro vestibular na UFRGS, que passou em primeiro lugar no concurso do Ministério Público, que juntava seus manos no mercado para comemorar com sorvete. A irmã que me mostrou que existia TPM. A irmã que apartava a briga dos pais e corria para acalmar as crianças. A irmã que me apresentou a Fernando Pessoa. A irmã que me dava mesada para fazer massagem em seu rosto. A irmã que não tinha reserva em fazer amizades. A irmã que me cedeu a janela no avião. A irmã que eu esperava chegar em casa para que a alegria fosse natural e certa. A irmã que me emprestou alguns palavrões para que amadurecesse. A irmã que escolhia minhas roupas no shopping. A irmã que me carregava no colo após correr o dia inteiro. A irmã que mudava de cor dos olhos como se as abelhas ainda estivessem em suas córneas operando o mel. A irmã que me dava conselhos, que me consolava ao perder amores. A irmã da qual roubei cigarros para fumar na escola. A irmã que lê meus livros escondida. A irmã que soltava piadas na hora do jantar e provocava a família a derrubar preconceitos. A irmã que organiza churrasco para reunir a turma. A irmã que paga a conta do restaurante em segredo. A irmã que nunca demorou para chorar em minha frente. A irmã que é mais poesia do que a poesia que escrevo. A irmã que mora na rua de minha memória esquina com a Soledade. A irmã que aumenta as histórias com sua vontade de amar.


A irmã que não importa como e onde será a minha irmã mais velha.


Eu não esquecerei de sua generosidade para lembrá-la que nasci - além do ventre materno - de sua teimosia em viver.

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