quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/18/2005 10:36:25 AM

A ALEGRIA EMBURRECE

Gravura de Miró


Fabrício Carpinejar





Quando estou triste, fico mais centrado, mais vulnerável, mais ouvinte. Meu olhar faz leque para a boca, como se fosse reencarnação renascentista. Quando triste sou mais eu. Mais filho das palavras do que pai. Mais corrimão do que degrau. Tenho mais confiança de que não sairei de uma conversa, de casa, da varanda de um suspiro. Quando estou triste, sou doméstico, ponderado, lembro das contas e acerto os nomes dos parentes distantes. A tristeza é inteligente, sábia, metódica, capaz de ser ao mesmo tempo doce e áspera. Quando estou triste leio em silêncio, rumino, pesco luzes, arrumo as gavetas, organizo álbuns, pergunto o que não me interessa.


Quando estou alegre temo não voltar a mim. Posso me largar, me beber de gargalo. A alegria emburrece. Acabo tonto, sem nenhuma idéia original, disperso, bastando-me com os gestos. Ajo como uma criança imitando adultos, não um adulto imitando crianças. Falo besteiras, falho, farto, sou bem mais egoísta, não canso de repetir as poucas frases de contentamento. Sou imprevisível, ansioso, precoce. A alegria emburrece, porque é espasmo do corpo, estalo dos dedos. A alegria emburrece. Canta-se as músicas da adolescência como se fosse cedo, vira-se a noite como se fosse manhã, vira-se a mesa e a toalha se encharca de vestido.


Quando estou alegre, o ímpeto de aventura me faz escandaloso. A alegria emburrece. É uma paixão por si mesmo. Minha alegria não fará poemas, não entrará na posteridade, não deixará recados no espelho. Minha alegria é invisível, esquecida, ela gosta de um desaforo, de um nome feio, de teimosia. Gosta de provocar. Faz amizades usando somente as sobrancelhas. Grita quando quer calar. Grita para se calar. A alegria emburrece, não é profunda, não intelectualiza, é legível e comunicativa como a fila indiana de gerânios nas janelas. A tristeza é amorosa, conformada com o nascimento. A alegria é excitada, véspera do mundo. A tristeza economiza, projeta as férias, não sai para jantar. A alegria é perdulária, gasta inclusive o que recebe emprestado.


A tristeza protege, pede conforto, cuidados, pesquisa. A alegria é inconseqüente, livre, não aceita esmola, não disfarça carências. Enquanto a tristeza pede desculpa, a alegria pede licença. Quando alegre sou mais o que não fui. Vibro com os pés. Mando embora os fantasmas.


A alegria emburrece. Não vou me apoiar numa estante para tirar foto. Não vou decorar o jornal para participar de conversas. A alegria emburrece. Eu admiro a alegria que me deixa idiota do que a tristeza que estuda, estuda e não me convence.

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