quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/17/2005 10:01:22 AM

CADERNO 2, O ESTADO DE S.PAULO

Sábado (17/12/2005)



PARA TOCAR NA BARBA DO BRUXO

Obra dá a impressão de Piza ter privado da intimidade do autor do Cosme Velho



Fabrício Carpinejar*

ESPECIAL PARA O ESTADO


Três anos antes do centenário de morte de Machado de Assis (1839-1908), chega-se à conclusão de que não se conhecia verdadeiramente a trajetória do maior escritor brasileiro. O tapa na cara vem da mão de Daniel Piza, jornalista e crítico literário, que acaba de lançar Machado de Assis - Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial). Qualquer machadiano assumido descobrirá que é um machadiano enrustido ou, no momento, pouco consciente da biografia do autor.


A epígrafe de Machado escolhida enuncia o caminho: "Ninguém sabe o que sou quando rumino." São justamente as ruminações que Daniel Piza procura, o que não virou voz carnal e pessoal nos romances e ao mesmo tempo não é silêncio e abstração, pois apareceu na maior parte da produção de Machado em crônicas e folhetins.


Machado não está em seus romances, porém naquilo que escreveu que não virou romance. Por simples que pareça e óbvio que fosse, Piza mostra a vida pela vida e a obra pela obra, sem tomar a interpretação crítica como conclusão biográfica. A isenção emociona e permite a censura livre da leitura, aberta aos leigos. Conclui-se que a bajulação e a mistificação foram prejudiciais nos empreendimentos anteriores, como a de Raimundo Magalhães Jr.


Não que Machado tenha apagado seus rascunhos, diários e produção. Estava tudo ali, à mostra, nos arquivos para ser pesquisado. Isso é o que fez Piza com sua memória fotográfica e imaginação bélica. Costurou o vidro, o que parecia até então impossível, diante da normalidade exasperaste de um brasileiro que, afora suas obras-primas como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, era um funcionário público comum, dependendo de favores e aceitação social, que defendia a Monarquia, apesar de vê-la desmoronar para o surgimento da República, que preferia a reclusão, que não viajou para o exterior, que foi casado durante 35 anos e não se envolveu em nenhum escândalo ou tragédia. Ou seja, um cidadão nada fora de série para virar história. O jornalista ainda tinha que enfrentar o desafio de preencher lacunas como a inexistência de dados sobre sua infância, com quem namorou antes de casar com Carolina, de sua formação religiosa e do histórico escolar. Fácil? Bem espinhoso. Não havendo jeito de mensurar o amor pela vida, o biógrafo mensurou o amor do escritor pela sua época (tomada de alterações abruptas da modernização como a instalação do telefone e o aparecimento do bonde, e de carnificinas a exemplo da Guerra do Paraguai) e explorando com exatidão sua postura diante dos acontecimentos marcantes da história do País.


Em nenhum momento, apesar de capacidade para realizar, Daniel Piza procurou adicionar sumário crítico ao autor, ciente da fonte inesgotável e precisa de seus antecessores como Roberto Schwarz, José Guilherme Merquior, Josué Montello e Alfredo Bosi, Susan Sontag, Carlos Fuentes, Alberto Manguel, John Gledson e Harold Bloom. Não defende uma religião, e sim uma fé. Avesso ao dogmatismo e ao anedótico, não era o caso de provar que Machado era um gênio, era o caso de provar que Machado foi um homem, retirando seu busto da galeria de fantasmas de rosto duvidoso como ainda são tratados Shakespeare ou Homero.


Em 13 capítulos, Um Gênio Brasileiro começa e termina por duas mortes, uma jogada narrativa espetacular. Afinal, foram duas mortes de Machado, a dele propriamente dita e a de Carolina quatro anos antes de seu fim. O livro é deflagrado a partir dos instantes anteriores ao último suspiro de Machado, aos 69 anos, na madrugada de 29 de setembro de 1908, quando ele recusa a visita de um padre e a possibilidade de uma forjada conversão. "Seria uma hipocrisia." Comovente é a entrada da imortalidade no quarto do defunto sob a forma de um jovem ansioso. Foi a aparição do futuro descrita por Euclides da Cunha, como amarra Piza:


"Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado. E o anônimo juvenil - vindo da noite - foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu."


Retrato emocionante e que não deixa de ser contido e econômico. Daniel Piza se esquivou da tentação de parodiar Machado com algum de seus contos e romances. Não brincou de Brás Cubas, um dos artifícios mais usados na moderna literatura brasileira (depois de Machado, virou moda morto falar).


Unir as duas mortes - a de Machado e de Carolina - se constitui em um acertos do volume e afirma uma capacidade de compreensão do biógrafo de que não houve nada mais importante do que elas. Talvez tenha realizado enfim o próprio sonho de Machado, que a vida não ajudou a construir, tendo em vista que Machado denominou a perda de Carolina como um "transe", "golpe" e "sua grande desgraça". Uma ilustração é a carta pinçada por Piza, na qual Machado desabafa sua dor com a brevidade intensa de um epíteto:


"Note que a solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela, ouvi-la, assistir aos mil cuidados que essa companheira de 35 anos de casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria um grande favor; primeiro, porque não acharia ninguém que melhor me ajudasse a morrer; segundo, porque ela deixa alguns parentes que a consolariam de saudades, e eu não tenho nenhum. Os meus são os amigos, e verdadeiramente são os melhores; mas a vida os dispersa, no espaço, nas preocupações do espírito e na própria carreira que a cada um cabe. Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo aposento, com os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará." (20 de novembro de 1904)


Em Um Gênio Brasileiro, Daniel Piza não se satisfaz em retratar somente o espaço (Rio de Janeiro da transição do Segundo Reinado para a República). Alcança a ambientação, fechando o olhar no personagem. É possível tocar na barba grisalha de Machado.


Piza cria cenas a partir de suposições e transforma-as em fatos. Alterna um tom grave com a ironia e provoca a graça quando menos se espera.


Nesse sentido, não descreve, mas narra acima de tudo, aproveitando os deslocamentos de pensamento de Machado como uma sucessão cadente de acontecimentos. Porque percebe que Machado foi um dos autores que mais colocaram sua cabeça a prêmio em jornais, críticas teatrais e peças. A impressão é que Piza copiou a chave e habitou na casa de Machado enquanto ele vivia, observando-o com esmero e paciência, sem interferir no curso de suas escolhas. Um ladrão generoso que entra na residência para devolver os objetos do dono, não para desfalcá-lo.


É evidente que apanha as ambigüidades do protagonista e suas indecisões confortáveis, como a de ter sido monarquista liberal e abolicionista, conservador e sátiro sagaz, francófilo influenciado pela literatura inglesa. A diferença é que evita um juízo de valor, colocando-se no patamar de "estranheza íntima". Só que as ambigüidades não diminuem o perfil, sustentam-no diante de uma época igualmente ambígua. Piza cuida, porém, em não sacralizar a epilepsia, a gagueira, a origem negra e periférica como modus operandi. Identifica como experiências que acentuaram a sensibilidade para capturar contradições sem piedade, inclusive as dele.


Outra motivação para se ler Um Gênio Brasileiro é o talento de Daniel Piza em transparecer a coerência progressiva do estilo de Machado, pondo por terra o mito equivocado de que ele se transformou de repente ao escrever Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). O que aconteceu é que ele soltou o humor como nunca. Pela primeira vez, com vasto material bibliográfico, assiste-se a uma evolução de estilo, gradativa e humana. A virada da estética de Iaiá Garcia (1878, publicado como folhetim) para sua produção final não existiu como um milagre ou uma febre. Deve-se a um objetivo acalentado lentamente desde seus primeiros trabalhos e que ganham desenvoltura e emancipação na colagem, metalinguagem e sátira social após o enfrentamento de Machado de Assis com Eça de Queirós, a respeito de O Primo Basílio.


"Em parte, como se vê, a crítica de Machado é motivada por uma repulsa a um método literário que, como dissera no passado, apelava aos 'baixos instintos' do público; e em parte, por uma objeção à estrutura narrativa, que não seria digna de um realismo 'puro', 'sadio', como o de um Almeida Garrett. Mas a situação não era implausível: mesmo que fosse um 'incidente erótico', a ligação entre dois primos podia ser alvo de chantagem de uma criada; por que não?" A ênfase de Eça era na degradação física advinda da psicológica, e para isso estava procurando uma técnica descritiva mais objetiva, mais cortante. Ele mesmo dizia que se tratava de um escrito "borrado", "desbotado". Da Inglaterra, escreveu surpreendente carta a Machado, em 29 de junho, para agradecer o artigo de 16 de abril:


"Apesar de me ser em geral adverso, quase severo, e de ser inspirado por uma hostilidade quase partidária à Escola Realista - esse artigo, todavia, pela sua elevação e pelo talento com que está feito, honra o meu livro, quase lhe aumenta a autoridade."


A carta, além de comprovar que os pseudônimos não eram muito eficazes em proteger a identidade dos autores, é uma demonstração de elegância. Eça reconhece os defeitos do seu romance, mas gostaria de discutir com Machado a importância do realismo para o "progresso moral da civilização". Do ponto de vista futuro, porém, o problema do seu livro, como do naturalismo em geral, era o excesso de moral, não a falta dela. Por outro ângulo, Machado tinha razão: não se conhece a psicologia de Luísa, Basílio e Juliana senão por traços exteriores. Eça se sairia muito melhor em livros posteriores, e não propriamente naturalistas, como Os Maias. Segundo uma biógrafa do romancista português, Maria Filomena Mônica, "as reservas de Machado de Assis tocaram Eça. Este percebeu que uma obra de arte não tinha de servir a intuitos sociais".


A crítica, assim, dava também uma pista daquilo que ele, Machado, estava buscando para sua ficção. Não queria personagens que se definissem pelos atos, mas dos quais se pudesse conhecer seu interior. Os monólogos poéticos de Shakespeare funcionavam para o teatro. O romance em prosa deveria criar outro meio de revelar as dúvidas, os dramas internos, sem divorciá-los da trama. Não ceder ao realismo excessivo, mas fugindo ao romantismo convencional. Não à toa, no romance seguinte, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado vai pela primeira vez lançar mão da primeira pessoa - e de uma primeira pessoa que não é o autor, ou alguém alheio à história, mas um dos personagens envolvidos".



Se Machado mudou os patamares e as exigências literárias do País, enterrando o realismo excessivo ou o romantismo tradicional, Daniel Piza mudou definitivamente Machado de Assis de agora em diante.


* Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de "Como no Céu/Livro de Visitas" (Bertrand Brasil, 2005)

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