quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/21/2006 08:48:44 PM

CADERNO CULTURA, ZERO HORA

Exibindo conteúdo de 21 de janeiro de 2006.

Porto Alegre (RS) Edição nº 14760



Literatura


COM O MAPA-MÚNDI NA CABEÇA

O catalão Joan Brossa, homenageado com uma exposição no Margs, em Porto Alegre, explorava a inteligência do óbvio e a leveza séria da ironia


FABRÍCIO CARPINEJAR*





Uma luva postada com selo. Um sofá vermelho assassinado por três flechas em suas costas. Uma roda quadrada. Uma lâmpada de 100 volts com inscrição da palavra "poema" em sua redoma. Um relógio centopéia com seis ponteiros. O artista catalão Joan Brossa concebia a poesia como um dialeto, que apenas começava no idioma do livro. Avisava com ênfase: a linguagem literária deixou de ser o único veículo para abrigar conteúdos e formas líricas. Transformava coisas em poemas e poemas em coisas. Com ironia, refez a funcionalidade do cotidiano e criticava os costumes. O casamento é ironizado na forma de algema, um bracelete empregado como um dos círculos da peça.


Seu escritório é ao ar livre, feito de relatórios de fruteira, dias de Carnaval, cartas de baralho, como um Arhur Bispo do Rosário que liberta os objetos, não os prende em tecidos. Anunciava concreções visuais, acessórios do olhar na seqüência de poemas-objetos dos surrealistas. Tanto que ele se proclamava um "neo-surrealista". Retirava o contexto de figuras e realizava uma justaposição de conceitos e planos. Mais do que uma idéia fora do lugar, efetuava lugares fora das idéias.


Brossa, admirado por João Cabral, que lhe dedicou um poema em Paisagens com figuras e imprimiu um de seus livros (Sonets de Caruixa) em sua estada como cônsul de Barcelona, transbordou os limites da página e investiu na poesia escrita, visual e cênica em mais de uma centena de títulos. Seu verbo não terminava onde era cortado o papel. A atitude de um homem que usa o cabelo como chapéu. A impostura sem enganos, a inteligência do óbvio. Sua poesia vai além das aparências, com o diferencial de não sair delas. Caçava o poema como um rato no porão. Seus versos extravasam um estado permanente de honesta indecisão.




Um iconoclasta faz pose:Joan Brossa e a sua "Luva correio", de 1967


Não somente pensava, pensava o pensamento, como pontificava Murilo Mendes. Não escrevia para concluir, mas para reabrir a discussão de um caso encerrado.


"São tantas as diferenças que noto entre o que sinto e vejo, que, se me lembro de tragédias pessoais, acendo um cigarro e saio do poema"

(Poesia vista)



Sobrevivente da Guerra Civil Espanhola, que o marcou com um estilhaço no olho, persona non grata do general Franco (Poemas civis foi publicado na íntegra depois do falecimento do ditador, em 1977), Joan Brossa morreu aos 79 anos, em 1998. Colaborador de Antoni Tàpies, amigo de Miró, é um investigador minucioso, acurado, fabricava o real para retirá-lo do comércio e o abençoar em artesanato. Interessava-se pelas palavras que poderiam ser pegas com as mãos. Trata-se de um desenhista (utilizando apenas o lápis), procurando o elo perdido entre o semântico e o visual.


Em Brossa, as palavras se representam, não são produtos de uma mediação. Trabalha o alfabeto com lupa. É capaz de encontrar as estrias e a celulite das letras. Exagerava na ourivesaria da língua. Poesia como necessidade expressiva de claridade e clareza. Contrariava a conexão lógica e favorecia associações fônicas. Percebia o som como escultura.


No Brasil, tem sido traduzido com esmero. Vale ler as coletâneas Poemas civis (Sette Letras, 1998), traduzida por Ronald Polito e Sérgio Alcides, Sumário astral (Fabricando Idéias, 2003), vertida por Ronald Polito, e a recente Poesia vista (Ateliê Editorial, 2005), selecionada e traduzida por Vanderley Mendonça.


A perspectiva é uma de suas preocupações, propor ao texto um aprofundamento de cena, com duas ou três ações simultâneas, uma desdobrando e justificando a outra. Ele ensina a desenhar enquanto escreve. "Num desenho que figura um pássaro / tracem uma linha do bico / à pata esquerda" (Poemas civis) ou "Me olho / num espelho de mão / no qual pintei um bigode, / e tento fazer com que as linhas / se encaixem sobre / meu lábio superior" (Poesia vista).


Existe uma fruição do frugal, a delícia do que não depende de explicações (evocando Alberto Caeiro), dando aos atos singelos e insignificantes o que realmente são: atos singelos e insignificantes. Ele se dispensa do papel de prefácio e prólogo da realidade. Poema não se justifica. Melhor ver. Engraçado é que emprega os sujeitos, verbos e advérbios como seu grupo teatral. Ele é o diretor e os adjetivos são a platéia. Metalinguagem da fluidez, brincadeira da maleabilidade. Não perde a leveza mesmo quando sério e grave. Sabe que o sopro da boca é para fazer voar.


Movimenta-se em uma despretensão no ato de observar, que é diferente de naturalidade. Empobrece a percepção para despoluí-la. Tudo o que diz é com humor, impregnado de uma comicidade chapliniana e um talento para desafiar os condicionamentos.


"Uma onda ou uma árvore, ainda que possam ter muitos detalhes, representam uma onda ou uma árvore"

(Poemas civis)



Cheio de aforismos, aconselha e orienta o fluxo do visível, como um guarda de trânsito. Há o deboche da falsificação da voz pela influência externa, da ausência de espontaneidade que acontece em toda cena pública. Neste sentido, propõe gratuidades para confundir e afirmar sua liberdade de expressão "Hoje só presto atenção em formas triangulares" (Sumário astral).


Contrário à metafísica, processa a desconstrução de projeções sociais. Chega a pontuar: "há coisas que vistas / são mais simples do que explicadas" (Sumário astral). Tem consciência de que o poema tem um "fundo falso". O ceticismo e uma insuficiência sempre corrigida no dizer o aproxima de João Cabral. Brossa corrige seu olhar pela melhor expressão, transformando os versos em tentativas do verso. Marca uma atitude política de combate ao fanatismo e obsessões ideológicas, com o charme de estar à paisana: "A única coisa de que preciso / é imaginar grandes bosques / ou a fumaça de umas ervas."


Com Joan Brossa, o segredo é abrir o mapa-múndi sobre a cabeça. É o melhor guarda-chuva que poderíamos encontrar.


* Poeta e ensaísta, autor de Como no céu/Livro de visitas e Biografia de uma árvore, entre outros livros

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