quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/22/2006 06:05:10 PM

JOGO DE COMPARAÇÕES

Ilustração de Antoni Tàpies


Fabrício Carpinejar





Os pais estabelecem um jogo de comparações com seus filhos, determinando o que puxaram de um e o que puxaram do outro. É como se houvesse somente dois caminhos genealógicos. O filho fica prensado entre a mãe e o pai. Faço igual e com a malandragem de empurrar o temperamento difícil das crias para o lado materno. Ponho as facilidades de adaptação em minha conta.


A identificação inicia logo com o nascimento da criança. É uma adoração de seus pequenos feitos e passos. Quem não é pai e mãe estranhará o tom das conversas e os pormenores escatológicos. Melhor não ouvir. Comenta-se até a cor do mijo e do cocô. Uma atitude banal como regurgitar é raia de debates filosóficos e de previsões minuciosas. No princípio da filiação, pai e mãe não discutem mais nada. Contas e sexo são secundários no período. Depois das evacuações e amamentação, é a luta por se tornar a primeira palavra compreensível do rebento. O bebê boceja e a mãe sai gritando: "ele me chamou de mãe". A criança arrota e o pai descobre na sonoridade semelhanças com seu nome. Uma corrida insana para patentear os movimentos. A palavra de estréia da criança transforma-se no primeiro litígio amoroso. Devia-se existir um perito no mercado, misto de fonoaudiólogo com detetive, para esclarecer a dúvida.


É um jogo de poder e queda-de-braço. Pode ser inclusive divertido. De noite, o casal entre beijos resume na cama as últimas dos filhos, os vocábulos surpreendentes, os atos inesperados, os gestos de carinho. E estão contabilizando: - Isso é meu, isso é seu. Lembra inventário de parente, liquidação de loja, em que a educação não nos faz permanecer quietos e regrados em fila, e estamos nos atirando para segurar o maior número de objetos. A atitude não é negativa. Mas corresponde à chance de perpetuar as aspirações, de vingar a personalidade e, quem sabe, de viver além da efemeridade da carne. É evidente que a maldade e a indisciplina serão órfãs. Não há um interessado para adotá-las. Quando a criança apronta, é normal comentar: "não sei quem você puxou...". A porção ruim e selvagem é creditada ao acaso. Somos pais apenas das boas notícias e primos distantes das más.


Os apontamentos das semelhanças vão além das características físicas. Seria tolo dizer que o filho é alto porque sou alto, de que é castanho porque a mãe é castanha, de que tem olhos claros em respeito ao avô. O cruzamento refere-se a traços subjetivos, que formam o DNA do espírito, que inclui teimosia, implicância, generosidade, resistência, inteligência e coragem. Os pais realizam um teste vocacional a cada semana. Os filhos nem notam.


Eu sofri intensamente na infância e adolescência a comparação. Com pai poeta, escrevia uma redação mais lírica e a professora já me classificava como seu herdeiro. "Filho de peixe, peixinho é...", escutei esse bordão em todas estações de minha rádio, AM ou FM, diante dos colegas ou reservadamente, como a apontar que o mérito não era meu. O que os interlocutores desconheciam que a minha mãe também escrevia - e só não tinha publicado.


Vicente, meu filho de três anos, me deu uma aula sobre projeção. Estava dormindo de tarde e escutei a porta batendo. Fui correndo ver se alguém tinha entrado em casa - o susto de um assalto. Vejo a porta fechada em cima e com a tranca de baixo. Vicente me olha assustado. "O que houve? Quer sair?", questiona. Digo que não e pergunto quem bateu a porta. "Eu", ele responde. "Estava aberta". Verifico que trancou perfeitamente. Neste momento, concluo que ele não puxou nem a mim, nem a sua mãe, puxou a ele mesmo.

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