quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/10/2004 10:01:30 AM

BILLY NÃO USAVA COLEIRA

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar


Minha mãe liga de noite chorando. Minha mãe ligou umas três vezes na vida chorando, o que é pouco, o que significa o quanto pode ser grave. Perco o ar do outro lado. Ela gagueja algo, peço para repetir, temendo que ela repita. "Billy escapou, pulou a janela, passou um carro e atropelou o nosso bichinho". Billy (nunca escrevi o nome dele e não sei se é assim ou Bili ou Bily) era o cão poodle do Miguel, meu irmão mais novo. Ficava na casa da mãe alguns dias enquanto ele preparava sua mudança de Salto do Jacuí para Agudo. Miguel é o caçula e será eternamente, apesar dos trinta anos. Introvertido, quieto, cuidadoso. O mais organizado dos filhos. O mais preocupado com os irmãos. Sempre me pergunta, preocupado com as dificuldades de poeta, se preciso de alguma coisa. Billy tornou-se sem querer o mascote da família. Viajava com Miguel e alentava temporadas nos finais de semana em Porto Alegre. Eu reclamava do cachorrinho na casa materna, pensava que era incomodação e que daria trabalho. Afinal, que amor não dá trabalho? Errei, fui egoísta. Envolvi-me com seu jeito espumoso de levantar o focinho para esperar o arremesso da bola ou quando pulava na cama das pessoas para acordar com suas lambidas desaforadas de afeto. Havia uma casinha na sala. Uma casinha azul. Um abajur aceso todo dia. E três folhas jornal de classificados demarcando o território. O Billy abanava o rabo e as tranças, o corpo ao mesmo tempo, como quem toma banho e se esforça para ficar sujo e vivo novamente. Vicente criou uma paixão pelo filhote. Tanto que passou a chamar a vó de "a vó do au-au". Não sei como contar ao meu pequeno que Billy morreu. Como se explica a uma criança que alguém foi embora? Dizer que se encantou? Dizer que partiu para Deus? Mas o que ele entende por Deus? Não adianta, depois de muito ouvir, depois que penso que ele compreendeu, me olhará firme e perguntará onde está o 'au-au'. A incompreensão dói porque já é compreensão. Vicente e Billy se encontravam debaixo da mesa para brincar. Trocavam de papéis: Billy era criança e Vicente o au-au. Os dois permaneciam horas conversando um idioma de pássaros, pedras e chuva, ciscando lã e cabelos um dos outro. Um idioma que o adulto não entende pela pressa da boca em falar com os ouvidos. Riam. O cachorro ria, ouvia com nitidez. Nunca percebi que cachorro gargalhava. Vicente alcançava a comida e acalmava sua ânsia: "tá bom, tá bom". Como minha mãe avisará o Miguel? Tampouco imagino, ainda mais com a sua responsabilidade da guarda. E a Mariana? Minha filha disputava corridas com o cãozinho no pátio a desencavar o céu.


Billy entrou na família sem querer e ensinou que querer não se ensina. Morrer é improvável. A rua Lageado é pacata, de poucos carros. Dessa vez, veio um à toda, assim como aconteceu com o cachorro Sete quando ele escapuliu dos meus oito anos. Viver é perdão. Na tardezinha de quinta, a mãe recolheu o cachorro, para incredulidade do vigia, deitou-o generosamente no banco da varanda, onde assisti toda a minha infância, no banco mais antigo do que o jardim, mais antigo do que o próprio porão, e me telefonou em choque: "seu rosto ainda está quente, seus dentes ainda estão quentes, seu coração ainda está quente".

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