quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/10/2004 09:57:18 AM




ORELHAS DO LIVRO

"ATÉ NUNCA MAIS POR ENQUANTO", DE LUÍS ANTÔNIO GIRON



Fabrício Carpinejar


Quando não se tem mais expectativa de invenção na literatura, ela trata de recarregar as baterias. Até nunca mais por enquanto, de Luís Antônio Giron, não tem medo do escuro, do salto, da ousadia. Traz um "desespero fictício" que convence imediatamente pelas suas analogias com a realidade: cadáveres descongelados, índios escolhendo seus dotes virginais, a questão do duplo, quedas de boneca, manuscritos envenenados de vaidade. São vinte histórias e muitas outras invisíveis e embutidas na contida e discreta numeração da tábua de pesadelos. Puro deleite. O autor apresenta um estilo definitivo, pessoal e intransferível, que se insere na melhor tradição satírica, honrando vertentes abertas por naipes como Campos de Carvalho. Confia na depuração verbal, no jogo semântico, na força sonora das fábulas. A estranheza e a irreverência dos títulos dão o tom: "Obstáculos Isolda", "Musa imunda", "Nimbado de cloro", "Execrável belvilacqua ou eternos chefes", e assim sucessivamente. Dificilmente encontra-se um escritor altamente inconseqüente, capaz de acertar inclusive quando se erra. Uma ilustração é o texto "Apologia a Betty Boop", em que desfaz a falsa antítese sexualidade e infância. A partir do desenho animado, cria estranho quadro de sedução tendo como ponto de partida as pernas e a testa de Betty e suas figuras de apoio, como o cachorro Toddy.


Impressiona o humor macabro, a excentricidade visual, capaz de combinações poéticas inéditas e surrealistas como "a luz ofegava como um cão esfaqueado" ou "coágulos do crepúsculo". O lirismo age como indutor expansivo da imaginação. Datas aleatórias e historiografia servem para confundir, mas o papel da literatura é, acima de tudo, confundir para aclarar. Nenhuma certeza surge sem "noites culpadas". O autor mitifica o falso e embaralha o verdadeiro, evidenciando a gratuidade dos acontecimentos.


Outro ponto positivo é o caráter altamente dramático e cênico da obra, com profusão de onomatopéias. Giron é uma espécie de "Cobra Norato urbano da prosa", evocando título significativo do poeta gaúcho Raul Bopp. Valoriza os relatos elípticos, evasivos e sugestivos da tradição oral, recorrendo a uma pureza da fala enquanto aprendizado, imprimindo talento ao reproduzir a língua "falada" mais do que a escrita.

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