quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/12/2004 10:46:31 AM

SOLIDÃO NÃO É PREJUDICIAL À SAÚDE

Gravura de Vermeer


Fabrício Carpinejar





De todas as mesas postas, a do café da manhã é a que mais me influencia. Ser o último a levantar, as migalhas denunciando a família na toalha. Varrer o chão de linho com as mãos. O rosto inchado, aos poucos desinflando. A cozinha parada como nata. Escolher entre o mel e a geléia e não errar em nenhuma das decisões, dourar o pão sem pensar em nada, nadificar o pão. Tomar um gole de café forte como quem engole a luz. Barulhar o leite. O som do leite na garganta já é a voz querendo sair. O café da manhã torna-se a única refeição que não me sinto sozinho desacompanhado.


Não sou daqueles que vê alguém isolado e pensa que está infeliz, exilado, apartado da sociedade. Se a pessoa persiste fora do grupo numa festa, no trabalho, numa poltrona, de repente está alegre consigo mesma. Alegre com sua solidão. Há uma necessidade cultural de puxar conversa com quem está calado. Como se a conversa fosse companhia. Como se falar fosse um favor. Há a necessidade cultural de criticar quem mora com independência, como se fosse falta de opção. Há a necessidade cultural de chamar de coitado ou coitada quem não depende de um telefone para levantar os braços. Há a necessidade cultural de condenar a solteira e logo deduzir que não arrumou namorado por descrédito pessoal. E será que não é escolha? Na tradição familiar, as tias sofriam o maior dos preconceitos. Só viravam tias por incompetência, caso não casassem. Há uma necessidade cultural de chamar para se divertir um filho que lê um livro no quarto. Será que aquilo também não é diversão? Escutei muito: 'vá brincar lá fora, tem sol'. Dentro não pode ter sol? Duvido sim dos que não ficam um pouco em si, mergulhados, imersos, centrados, costurando as palavras com os cílios da agulha, tramando uma figura no pano de prato, uma figura que nunca terá legenda. Os pensamentos conversam quando paramos de ouvi-los. Cada um é seu próprio amigo em segredo. Solitário, respira-se a medicação do verde, limpa-se os óculos na camisa e sopra-se as lentes. Não é ruim querer ficar em seu canto, com seus hábitos, alargando os chinelos com o uso e desabotoando a boca com chocolate. Não se enxergar como a parte ofendida. Não ser refém do movimento para circular o sangue. O respeito não chega com a cor dos cabelos. A mata fechada tem sua clareira no solo. Assim é possível se preparar para amar mais o que não está na gente. Nem tudo que é par é completo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário