quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/19/2005 09:51:43 AM

FUNDO MUSICAL E O FUNDO DA MÚSICA

Foto de Marco Antonio Filho


Fabrício Carpinejar





Há uma situação que me enternece: as bandas e artistas que tocam em lugares ermos para fundo musical. Estão tocando e o público conversa mais alto do que o próprio som, entretidos com o chope, o pastel, o bauru e a menina. Os espectadores não foram convidados para a festa, jantam com o desprendimento de uma tevê ligada. A mesa mais procurada é a que fica longe do microfone. E os músicos atentos e concentrados como se a casa estivesse cheia só para vê-los. Não importa se tocam bem ou mal, não serão descobertos naquele ponto. São invisíveis, não têm cartazes com seus rostos, cds com suas letras e muito menos produtora para desabafar. Não saíram no jornal, ninguém comprou ingresso para assisti-los. Não são escolhas, mas acasos da rotina. Entraram anônimos e vão deixar o ponto anônimos. Devem trabalhar no turno inverso para sustentar a família e as contas. No expediente comercial, sonham com essa uma hora e meia de palco, ainda que em shoppings e restaurantes. Suas maiores alegrias são a véspera da alegria. Em caso de local lotado, os circunstantes não escondem o desprezo: desejam paquerar, comer e curtir a noite. Batem palmas no final da música do mesmo modo mecânico que levantam a mão para o garçom. Se está vazio, é possível identificar os familiares e namoradas em duas mesas, incentivando com o escândalo de tietes. Nota-se que é um entusiasmo filial, não espontâneo; a platéia familiar grita os apelidos dos músicos, para desespero dos músicos. É comoção pura, não é complacência e pena. Diria que é até inveja. Invejo a relação pura que eles alentam com a música, sem retorno, sem ambição, senão a de estar conversando com o violão, com o timbre, encontrando o melhor tom e escala. Nada têm para querer. São livros inéditos na gaveta. Esses artistas confiam em si o que os outros desconfiam. Transbordam intuição. Confiam no talento, na esperança, na insistência. Resistem às dificuldades, à descrença, às vaias e ao descaso. Sentimentos que sozinhos já fazem um estrago; juntos, então, nem se fala. De repente, não serão conhecidos, mas estão tentando. Se não são futuro, ao menos, não são passado. Afinam as idéias, soltam sinais entre si para as próximas canções, vibram de olhos fechados. Mostram suas composições, lutam contra a algazarra paralela do público e com a solidão das cadeiras. Recebem uma ninharia ou nem isso. Não é o dinheiro que está em questão, e sim a oportunidade, o espaço aberto, a chance, o milagre do diálogo. Para quem escuta é obrigação, para quem canta é vocação. Para quem escuta é entretenimento, para quem canta é show. Eu pego uma cadeira e escuto. Não peço nada, escuto. Estou sinceramente comovido, porque há gente que acredita na arte mais do que no mercado. Arte como a única forma de sobreviver à falta de arte.

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