quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/21/2005 04:03:45 PM

NATUREZA VIVA

Gravura de David Hockney


Fabrício Carpinejar





Eu reservo para comer o que mais gosto no final. Não sei como começou esse ritual. Pensando bem, é desde que me ensinaram que não se fala na mesa. É evidente que não obedeci o mandamento do silêncio. Falo com a boca cheia, bem melhor do que não falar de boca cheia e morrer de tédio.



Inicio com a salada, pouco inspirado, parto para o arroz e feijão e, depois, diminuo a velocidade da garfada com o bife milanesa e a batata frita. Não significa que como esse prato todo dia, mas batata frita ficará para o final em qualquer cardápio. É o meu desfecho predileto. Engulo o verde por obrigação e, aos poucos, amanso o hábito para uma fisgada contemplativa. Minha respiração muda de acordo com a intensidade e expectativa das etapas, do sopro ao suspiro. Dificilmente vou rir de alguma piada durante a salada. É muito esforço e concentração e não posso me dispersar um segundo para não fazer careta. Já posso rir até do que não tem graça com o bife milanesa. É impressionante como o apetite abre a guarda e as defesas. O estômago é a região mais sensível dos olhos. Meu pai tentou um dia ser duro com seu editor em Porto Alegre e exigiu um aumento de antecipação de direitos autorais. O editor escutou, escutou e escutou a longa reivindicação em seu escritório, impassível, sem nenhuma objeção. Quando o pai pensava que o tinha convencido, entra na sala um garçom com uma fornada de pastéis. Meu pai é um devoto dos pastéis, a ponto de parar de noite num posto deserto em uma cidade remota para provar a fritura. Nessa pausa, o editor contra-atacou, revidou argumento por argumento e ainda conseguiu baixar o valor da antecipação ao autor que estava assegurada. E o pai saiu da sala radiante, como se tivesse alcançado seu objetivo inicial.


Será que a ordem das coisas altera a natureza das coisas? Imaginava que era um crime morrer idoso, distanciado da infância, desprotegido e abandonado de seus contemporâneos, que foram fechando as malas em breves obituários. Defendia a teoria que se deveria nascer velho e rejuvenescer em sentido anti-horário: maduro, quarentão, adolescente e, por final, criança. Seria muito melhor para cada uma das fases. Por exemplo, não podia ser permitido cair na adolescência sem preparação. Assim como não faríamos tantos erros de relacionamento com uma imaginação experiente e uma memória prodigiosa, de trás para diante. E o asilo seria uma creche e a creche seria um asilo. Ninguém faria também cirurgia plástica para esticar a pele e ficar novo em folha, porque todos desembocariam fatalmente para a juventude. Mas encontrei um ponto negativo que destruiu minha tese: eu iria morrer tão passarinho. Odeio a possibilidade de morte na infância. Argola de caixão pequeno é trinco da porta do inferno. Inexplicável.


A ordem dos fatores não altera em nada o resultado, porém confunde, confunde. Fui educado para namorar, noivar, casar. Acabei casando, namorando e agora estou noivo de minha mulher. Dá para entender? Sou feliz desajeitado. De certeza, apenas que guardo a batata frita por último.

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