quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/18/2006 08:50:10 PM

A EX-CASADA

Ilustração de Man Ray


Fabrício Carpinejar





A ex-casada vai parir a separação. É como se fosse um filho. Primeiro vem a amamentação do fantasma. Ela terá que colocar algo em lugar do amor. Será a raiva. Vai odiar o ex-marido como ninguém, assim como amou ele um dia. Mesmo despedaçada, terá uma consciência aguda do que deve fazer. A ex-casada é prática com o fim de uma relação. Usa toda a subjetividade para enervá-lo, mas é objetiva dentro de sua casa. É capaz de fazer ciúme ou de provocar. Nada além disso. No primeiro mês não estará pronta para seduzir. Ficará olhando o mundo como se fosse um caderno de classificados. Não deseja comprar ou vender algo, está interessada em reencontrar a distração dos olhos. Contará com uma rede de amigas para reclamar do passado e de suas privações. É a vítima perfeita. Sua conta do telefone aumentará. Ainda que seu vizinho prepare festa e convide a bateria de uma escola de samba, não se levantará no meio da madrugada, sob o efeito do analgésico das lembranças que não existiram. Acordará tarde e se mostrará indisposta para andar de guarda-chuva. A ex-casada vai chorar depois que colocou a maquiagem. Precisa comprovar as conseqüências do choro.


Haverá uma sensação de alívio. Alívio tardio. Como se um feriado caísse no domingo e fosse tarde para voltar atrás. A ex-casada tratará de brincar sentada no chão e contará histórias de noite mais para si do que para suas crianças. Mudará o cabelo, comprará roupas, escutará a seleção de músicas da sua adolescência e pode tirar o pó dos LPs. Não mudará a lingerie. A ex-casada só trocará a lingerie quando estiver novamente apaixonada. Cuidará da nudez outra hora. Sua prioridade é manter a aparência forte para evitar perguntas indiscretas.


A ex-casada não substituirá uma ausência por outra. Seu luto é comer chocolate e assistir filmes românticos. Toda ex-casada começa a retomada pelo banheiro. Comprará tapetes coloridos. De modo nenhum, ficará arrependida, pois valorizava o que já tinha durante a relação. Tomará banhos longos para retirar resquícios do perfume antigo. Mexerá nas fotos do casal e brincará de lareira na pia da cozinha. Algumas imagens podem sobrar em função do cheiro e da fumaça escandalosos. Ela perceberá que nunca acionou um extintor de incêndio e não pretende estragar a pintura das paredes.


O problema da ex-casada são as baratas. Ela fechará as portas entre os quartos para não se apavorar. Poderá não aparecer durante o mês ao avistar as escamas pré-históricas. Não adianta matá-las com os chinelos. Terá nojo dos chinelos depois.


Não perceberá a TPM, não há ninguém para pô-la à prova. Tomará com cinismo a cartela de anticoncepcional. Deixará a samambaia sofrer como ela. É capaz de comprar cactos pelas pedrinhas brancas. Entende o estado mineral.


A descoberta da ex-casada é que seu marido não servia para muita coisa, afora afugentar as baratas. Abre os potes de pepino e constata o quanto era fácil girar a tampa com o pano. Reprisa as gentilezas que ofereceu em troca de um gesto simples e deseja pedir retratação.



A ex-casada se aproximará da mãe. Volta a ser menina. Volta a enrolar os cantinhos das fronhas. Dormirá de vez em quando no sofá para se distanciar do quarto. Será mais aplicada no trabalho. A ex-casada é encarnada nas obrigações, não usará desculpas pessoais para se livrar da rotina. Provará que pode se virar sozinha. Aliás, como sempre.

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