quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/26/2004 10:04:01 AM

COISAS FAMILIARES

Desenho de Mariana


Fabrício Carpinejar





Não volto mais. Não adianta resistir na janela, apertar o interfone, mexer as pernas com intranqüilidade, recorrer às paredes, avisar os parentes. Não volto mais. Podes arrumar a casa sem o café, virar o cinzeiro, dispensar os livros arranhados, os discos sublinhados. Não volto mais. Haverá espaço sobrando na mesa, na cama, no banho, no armário. Haverá espaço sobrando em teu ouvido. Não volto mais. Terás que buscar o jornal, alimentar o cão, morder o lápis, cortar a cebola na tábua como se fossem meus olhos. Perderás as datas de vencimento das contas, as chaves no bolso, o lugar das aspirinas. Não volto mais. Não sentirá o susto de ter adivinhado minhas idéias, o meu desespero em falar das novidades, os meus casacos espalhados nas cadeiras. Não volto mais. Não haverá jogos, apostas e brigas, o calendário permanecerá na mesma folha de novembro, não chegarei mais atrasado, a garrafa de vinho restará à toa, a chuva será água com gás. Não volto mais. Logo esquecerás o número de meus sapatos, o meu peso, o tamanho dos ternos, dos sonhos, dos fracassos. Não volto mais. Comprarás tudo em dobro: o amor, o xampu, os sabonetes, o pão, a comida. Pagarás tudo em dobro para consumir a metade. Não haverá meu prato para medir a distância de tua fome, meus talheres para aproximar as mãos. Jantarás de lado, com a televisão. Fecharás a casa deixando a tranca de dentro aberta. Manterás a esperança na escrivaninha. Não volto mais. Escreverás o nome de casado com a solidão solteira. Não identificarás as árvores e os colegas em teu trajeto pelo trabalho. Ninguém vai te ligar para entreter o cansaço. Não volto mais. Teu inverno demorará no escuro, teu verão demorará na luz. Não estarei esperando na porta. Faltará alguém para te elogiar. Não confiarás no espelho. Não volto mais. Tuas lembranças serão deserdadas, parte das fotos sumirão de repente, as cartas servirão de rascunhos. Deixarás de comer peixe com receio dos espinhos. Não volto mais. Me chamarás de filho da puta e conversarás com a minha mãe para saber de notícias. Me ofenderás por não te entender, por não te amar, por não insistir. Me julgarás sem direito a opinar. Convencerás tuas amigas que sou desleal, que não fui fiel, que não presto. Tomarás um porre para chorar, a verdade será maior do que a tua vontade de mentir. Não volto mais. O último beijo será o primeiro. Pastarás o pão com as migalhas irritadas, pastarás o papel com as vogais irritadas. Não volto mais. Vais odiar a sala limpa, as estantes alinhadas. Mandarás flores para teu endereço. Minha tosse não te acordará de noite. Não volto mais. Não faremos mais sinais em lojas, não subiremos as vozes no carro, não torceremos juntos. Não volto mais. Tentarás prever onde ando, com quem saio, com quem finjo. Meus cabelos serão nuvens pelo tapete. Retornará o medo de fantasmas, de versos. Não volto mais. Não volto mais para o meu corpo.

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