quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/13/2006 12:09:01 AM

SOU UM CARACTERE CHINÊS

Arte de Paul Klee


Fabrício Carpinejar








Na escrita chinesa, apenas cinco caracteres permitem a leitura de primeira, sem combinação. Apenas cinco são desenhos que geram a compreensão imediata. Os outros 20 mil são lidos pelo conjunto. Uma letra ampara e completa a anterior.


A escrita chinesa é casada. Os ideogramas dormem juntos.


Eu sou um caractere chinês.


Sempre fui casado mesmo quando solteiro. Por dentro, casado. Por dentro, romântico e incurável. Por dentro, jurando viver toda uma vida com uma única mulher. Por dentro, singelo e pavorosamente crédulo. Já ouvi que sou ingênuo. Tentei ser ranzinza, cético e calhorda. Não funcionou, porque não me interessa a realidade, interessa-me se é possível. Sendo possível, insisto.


Não sirvo para imitar. Não sirvo para emprestar, dou e não reclamo. Dou.



Sou dos homens o pior. O que não se enxerga sem uma mulher o enxergando. Valorizo o que sou quando recebo de volta. Eu me atravesso numa mulher. Nem saio se ela não estiver em mim.


Nenhuma dor diminuiu meu casamento por dentro. Nenhuma dor me separou da ilusão de estar casado. Minha voz é casada, meus braços são casados, minhas pernas são casadas.


Sou tão casado que subestimo a separação. Separação não existe. O máximo que acontece é se afastar. Não há como apagar o que se avançou. Não há como riscar o caminho da boca. A boca não deixa pegadas. Não há como eliminar o que já faz parte do seu movimento, do seu caráter, do seu modo de segurar as palavras. Afastar-se é observar de longe, não abandonar.


Quem não é casado por dentro nunca será casado por fora. É uma escolha, não um estado civil. Um homem casado não depende de uma aliança para mostrar compromisso. Ele é a aliança.


Olho o céu com paciência. O azul não me cansa. Uma ave voando não significa que está partindo. Uma ave voando pode estar regressando.

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