quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/8/2005 10:08:32 AM

JORNAL ZERO HORA, CADERNO CULTURA, 8/10/05


MÁQUINA DE DEMOLIÇÃO

Novo livro do gaúcho Carlos Eduardo Caramez funciona como o diário de uma desintoxicação - física e política


Fabrício Carpinejar*


Ilustração de Jean Cocteau





Carlos Eduardo Caramez possui o dom de nunca se adiar ou se protelar. Escritor gaúcho, representa uma aparição fulgurante na poesia brasileira. Lançou Construção das ruínas (Leitura XXI, 86 páginas), sua segunda obra, que completa e prossegue a Última safra do silêncio (1998). Os dois livros têm igual subtítulo: Poemas incuráveis, envoltos na mesma placenta de inconformismo e luto. Poesia visceral, apressada, fendida, que não leva desaforo para casa. A leitura acontece em desafogo, em desabafo, para ser feita com estetoscópio. Em cada passagem, há a gravidade de um segredo sendo dito, de uma confidência urgente. A sensação é que o autor segura no ombro do leitor para falar e acentuar a gravidade da revelação.


Caramez se impõe como se fosse tarde mas ainda necessário, com um desencantamento que resgata a raiva fria e a bílis de José Régio e de Álvaro de Campos. "Não vou para o futuro / já conheço Deus / desobedeço o Diabo / atravesso o escuro / transgrido o tempo / prefiro correr outros riscos // troco meu nome na lista / saio da fila de embarque // resolvi não esperar mais / não deixar nada pra depois / fico infinito aqui mesmo / o mais bonito que posso / não vou brilhar além disso // me encontre daqui a pouco / amanhã pode ser tarde demais".


Retrata uma geração que foi fundo nas drogas, na ideologia, no amor e ainda não se curou dos limites. "Tudo que tem passado não me serve", diz em um dos dísticos, confessando que essa geração, hoje cinqüentona, se encontrou com o futuro e não se reconheceu. É uma celebração da insônia, da vigília, do anonimato. O tom é noturno, próprio da impaciência, da agressão que se defende, não a que ataca.


Um paralelo é perceber o livro como a transposição de um drogado ou de um bêbado em estado de desintoxicação, como fez Jean Cocteau em Ópio. Sofre-se o impacto do jejum, da perda gradual dos sentidos e da dependência. São vários os exemplos de um estado selvático de torpor, entre fome, fadiga, sede e vontade de não se curar: "pior que morto / imprestável para enterro" ou "me dá o branco / vem o apagamento // não sinto mais nada / fico como um fio / desligado da tomada" ou "acostumados com a dor / a espera de um telefonema / do sono / de alguma grana / de um". É o diário de um isolamento que não permite nada pessoal, como a solidão ou a esperança. O vício ronda como um inimigo oculto, que não oferece trégua. Um inimigo que conhece mais o sangue da vítima do que a própria vítima: "sou engolido por mim mesmo". A dor física é de menos diante da dor intelectual, que supera as contrações e o enjôos. Uma dor da ausência. Uma dor de um braço que não existe mais, de uma perna que cansou de ir, de um corpo que se conformou em ficar quieto.


Enquanto muitos autores constróem sua identidade nos primeiros livros, Caramez destrói a sua, esfacela a personalidade em um jogo de paradoxos e contradições. "chego sempre atrasado/ ando com dificuldade/ a minha sombra e o meu vício/ transformam meu próximo passo/ num cair de precipícios/ perco todo meu tempo/ para desfazer isso". Produz uma experiência afirmativa de denúncia a partir da soma negativa de desastres. Cada perda e derrota é uma cicatriz, uma lição.


O esgarçamento, o desafrouxar da aparência, o aniquilamento tanto verbal como temático prolongam o mal-estar. Em nenhum momento, a persona poética exige compaixão e pena, socorro e ajuda. Não entra na vida, tampouco se despede. Construção das ruínas valoriza o olhar periférico sem pedir a compensação da esmola. Não deseja a reintegração social: "não faço pedidos / não tenho alegria sobrando; / tudo meu está contado / contido / não existe folga / margem da manobra / é tudo exato / como uma bomba-relógio".


Não bastando falar na cara, Caramez aponta com o dedo. Identifica a omissão como o pior dos esquecimentos, o esquecimento familiar, de quem viu e não disse nada: "muitos vão dizer / que não sabiam // outros vão dizer / que não imaginavam". Em Caramez, andar sozinho é ainda estar acompanhado. Da honestidade.


* Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de Como no céu/Livro de visitas, entre outros.

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