quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/6/2005 09:51:05 AM

UMA TOALHA E OITO VIDAS

Da série "Infâncias inventadas"

Pintura de Magritte


Para Ésio, meu amigo


Fabrício Carpinejar





Morava em Alegrete. Quando criança, não queria tomar banho. Não por preguiça ou desleixo. Não por receio ou molecagem. Não queria tomar banho porque nunca poderia me secar direito.


Havia apenas uma toalha para os oito irmãos. Era o caçula.


O último a receber o pano, então pesado, pegajoso e úmido. Um nojo que não podia recusar. Evitava olhar durante muito tempo o pano azul. Fingia independência. Mas o pano azul no gancho ria de mim, me torturava dizendo: "entra, entra, entra". Uma puta que me esperava todo dia para tirar a minha virgindade.


Eu secava leve o corpo como se fosse um azulejo. Não conseguia sugar nada. Comprimia a lã com a lentidão de uma esponja. Como se estivesse em carne viva, como se fosse uma só ferida. Assim me secava, não querendo me tocar. Lembro da sensação das roupas colando na pele, a sensação de suor alheio, de vida emprestada. O cheiro usado, vencido e vendido da toalha.


Até a etiqueta não se levantava mais, derrotada pela passagem de tantos nus em menos de uma hora. Melhor era sacudir os braços tal cachorro, jogar a água longe e contar com a complacência do vento. Para me aquecer, corria ao sol se fosse manhã ou diante do fogão a lenha se fosse noite.


Acreditei até os cinqüenta anos que fui o desfavorecido da casa, a vítima. Ciúme dos meus irmãos que colhiam uma tolha mais seca, mais civilizada, mais risonha. Não compreendia a sina, o azar, a obrigação de cumprir o pior papel na fila indiana.


A pobreza fez brincadeira de mau gosto comigo. Não me permitia cheirar bem. Eu cheirava outra carne, outra pronúncia, outras covardias. Eu cheirava a própria falta de lugar.


Recentemente encontrei com meu irmão mais velho. O primogênito, o favorecido, o privilegiado, que pegava a toalha enquanto viva. Olhei fundo para ele, igual a uma criança subindo no banquinho de madeira para se observar no espelho. Acertaria as contas, desabafaria.


Contive a raiva, encontrei um pouco de ternura na voz:


- Como era se secar bem, usar a toalha pela primeira vez?, questionei.


Desejava descobrir sua alegria, já que a inveja não me deixou perguntar isso ao longo das décadas.


Ao invés de um riso franco de superioridade, ele fechou o rosto, entortou a boca com repulsa:


- Horrível, era horrível, aquela toalha seca e usada doía como um pano de chão. Vinda do varal, as felpas duras arrancavam o couro, um porco-espinho. Eu ficava riscado e arranhado. Eu sentia ciúme de ti, porque recebias a toalha amaciada e fofa.

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