quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/8/2005 11:42:21 AM

DIÁRIO DE UM APAIXONADO

Sintomas de um bem incurável


Ilustrações de Jean Cocteau


Fabrício Carpinejar





Perdoai a boca, não salta como os olhos. Perdoai os olhos, guardo sua nudez em minha boca.


Não desejo beber outra sede, quero fechar os lábios ao café, ao vinho, à água. Nada brilhará mais os dentes. Deixarei o mel de sua fome crescer em mim com a rapidez da barba.


O gosto do seu sexo não é doce, não é salgado, é ao mesmo tempo toda a mesa.


* * *


Respeito mais as ausências, deixo as pessoas passarem em minha frente, não ri tanto como agora. Aceito críticas com o desprendimento de elogios. Nunca amei tanto as crianças ou a infância que me faltou. Os pátios têm a religiosidade de vitrais. Observo os cachorros como anjos atrapalhados acomodando suas asas. Fico comovido na janela com o jeito que lambem as patas, os becos das patas. Sou capaz de demorar três horas olhando os cachorros dormindo, para não aprender nada a não ser os cachorros dormindo. O apaixonado é um comovido à toa. Pára de repente em si como se fosse chuva. Pula de repente de si como se fosse tarde.


* * *


Vontade de conversar com você mais do que tive de me conhecer. Vontade de morrer o mundo e ser pego em flagrante. Vontade de encolher a cidade em um quarto. Vontade de respirar sua respiração, pensar ter falado e não falar. Vontade de não ter existido antes para não me contradizer.


* * *


O apaixonado não é egoísta. Ele larga seus hábitos, para conhecer verdadeiramente quem ele gosta. Faz greve de sua personalidade. Muda a rotina, os horários, se esvazia dos preconceitos. No momento da paixão, cria necessidades súbitas. O que considerava fútil torna-se útil, o que considerava útil vira fútil. Se ele não gosta de bossa nova e ela sim, sairá à cata de tudo o que houver sobre o assunto. Vai se transformar em um especialista numa semana. Cursos intensivos são perfeitos aos apaixonados. Mais do que isso, não presta atenção. Menos do que isso, não convence.


* * *


O apaixonado é um ansioso. Precisaria ser dispensado do emprego durante o período. Suas distrações são maiores do que os acertos. Qualquer empresa deveria proibir a presença dos apaixonados - eles não estão nem aí. A produtividade cai, os contatos rareiam, as desculpas aumentam. Não entendo como não existe uma licença maternidade e paternidade para a paixão.


* * *



O apaixonado é um feriado. Ele se perde no trabalho porque está concentrado na falta. Ele é a própria falta. Preste atenção no jeito de um apaixonado sentar, torto e desajeitado, ele não ocupa toda a cadeira, é como se dividisse seu canto com alguém imaginário.


* * *


O apaixonado pode fazer as cenas mais hilariantes na rua sem perceber. Chorar no meio-fio da calçada, arrepiar-se de ciúme, gritar diante de um bar lotado. Seu sentimento é uma pessoa. O apaixonado muda de opinião com receio de ser abandonado e se abandona para se encontrar diferente.



* * *


Ninguém entenderá o apaixonado a não ser ele mesmo. Ele volta a fazer amizade com sua solidão.

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