quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/25/2006 02:30:29 PM

SÚBITA COMPREENSÃO

Pintura de Guayasamin


Fabrício Carpinejar





Só quero que seja feliz. Ele usa todo o céu da boca para a declaração


Repentinamente, posiciona-se preocupado com sua saúde, com o bem-estar, com sua fragilidade. Identifica seu desânimo, o estresse, a irritação excessiva. De onde partiu essa generosidade?


Como um santo convertido em plena guerra, ele passa a se importar com sua felicidade. Não é esquisito? Deseja sua alegria, a ponto de colocá-la acima da dele. Oferece o corpo ao sacrifício, renuncia o egoísmo para agradá-la. Finalmente se põe no lugar da mulher e vislumbra uma saída.


Com fala mansa e cordial, adverte que você precisa de um tempo sozinha, um intervalo para pensar e se fortalecer, seria agradável passear mais com as amigas, investir em projetos pessoais e largar um pouco a casa. Confessa que estava sendo egoísta, que não percebeu seu cansaço antes e pede desculpa pela lentidão de raciocínio. Age como um sonho de homem, dedicado e delicado.


Recomenda até uma viagem de férias, para Maceió, com tudo pago. Logo ele, extremamente sovina. "Eu cuido da casa, fica tranqüila", avisa. Promete que as plantinhas não irão morrer de sede, tem cabimento?


A impressão inicial é que teve um estalo, bateu a cabeça, acordou a sensibilidade, deixou o estado de hibernação masculina.


O que cheira mal é que a frase surge unicamente na crise e na tensão. Na briga e na despedida. Não será ouvida antes ou depois de um orgasmo, antes ou depois do arrebatamento. Não será ouvida no início do relacionamento. Aparece nos créditos finais do amor, quando o filme já foi visto.


A expressão é uma paulada, um genérico do "quero continuar seu amigo". Triste escutá-la de seu marido ou de seu namorado. Embebida de falsa serenidade. De veneno. De cinismo. Tem a gentileza de um fio dental.


O que ele está pedindo para que faça quer fazer para si e não tem coragem de assumir. Joga a responsabilidade para o seu lado. É um embuste, um golpe de estado. Ele espera que diga: "tem razão", para em seguida soltar os demônios, aprontar, fazer a pose de vítima e não se responsabilizar pela separação. Ainda sai por cima, com o paternalismo dos cuidados.


Só quero que seja feliz deve ser lido "é melhor nos separarmos, que tenho outros projetos". Só quero que seja feliz deve ser interpretado "quero minha felicidade, que não combina com a sua". Só quero que seja feliz é uma ordem de despejo entregue com educação.


Nunca somos felizes pelos outros.

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