quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/24/2006 11:05:10 AM

REDIAL

Para Aninha, em nosso aniversário

Pintura de Marc Chagall


Fabrício Carpinejar





Eu ligo umas doze vezes por dia para minha mulher. Com ou sem assunto, nos problemas ou na absoluta normalidade. Pode surgir uma tragédia ou uma bonança que dará no mesmo, vou ligar com entusiasmo num dia discreto e invisível. Sou o tipo classificado como chato, carrapato, grudento.


Nenhuma mulher gostaria da minha companhia. Solidão ao meu lado precisa me incluir. Não permito minha esposa ter um amante em paz. Ela exibe uma generosidade incalculável. Toma uma decisão delicadíssima numa reunião e lá vem seu marido interromper e perguntar de repente se está tudo bem com ênfase de profeta. Nenhum acontecimento extraordinário ocorreu desde a última vez que conversamos, mas extraordinário é arrumar linguagem sem a ação. A linguagem torna-se ação.


Peço exclusividade para revelar coisa nenhuma e me ofendo se ela não me socorre na hora. Descrevo o que comi no almoço, faço fofoca da família, aviso da última contratação do Internacional. Ou seja, temas inadiáveis. Sou como uma mãe novata, que detalha os primeiros sons do bebê com assombro. Ainda estou nascendo em mim.


Há momentos insuportáveis, em que embeiço um favor quando ela não pode se mexer com o excesso de tarefas. A pressa é autoritária: atropelo. Nem pergunto se ela pode atender: falo. Ela guarda muito amor para suportar o batuque do celular a cada meia hora. Torro sua paciência com relatórios do nada.


Herdei de minha mãe o dom aos assuntos secundários. Demoro a contar o que interessa, isso quando conto. Vou acumulando pormenores, detalhes inexpressivos, comentários fugazes para chegar ao motivo da ligação. Aliás, é raro um telefonema com motivo. Desligo antes de revelar. Ou esqueço o que desejava. Não ligo para passar recados e urgências. Ligo para estar junto. Uma das contradições é que uso a concisão somente ao receber chamadas e me perco ao fazê-las.


Não digo que pensei nela, telefono para demonstrar que penso nela. Observo uma vitrine, uma roupa que ela adoraria vestir, uma promoção imperdível de sapatos e me assanho nas teclas a questionar se ela já tinha visto. Manuseio o celular como um interfone, com a expectativa de que ela estará em casa e me mandará subir.


Por mais que eu telefone para ela, sempre tem uma declaração que escapa. Uma observação que esqueci e temo que seja enterrada. Já desliguei e sofro com a vontade de retornar. Sou um redial permanente.


Minha independência é da boca para fora, não sei viver sem narrar e partilhar a ansiedade. Não é insegurança, carência e couro do divã. As vozes dentro de mim não são tão atraentes, inteligentes e interessantes quanto a voz dela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário