quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/26/2006 07:50:43 PM

LEITE EMPEDRADO

Pintura "Léa e Maura", de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962)


Fabrício Carpinejar





Elas não eram gêmeas. Deus não repete a mesma letra.


Deus se nega. Nega ter escrito alguma coisa. Deus é um autor inédito. Janaína e Jamela nasceram no mesmo ventre, dois minutos depois da outra. Parto normal, como se fosse normal o homem. A mãe Arlete trabalhava como faxineira de hotel. Apagava a memória dos hóspedes, que encontravam o quarto ileso do primeiro dia. Não prestou atenção em quem veio primeiro. Janaína ou Jamela? Dois minutos é pouco para uma vida, muito para uma morte. Não pensou nos nomes. Já estavam prontos, com roupas e sapatos. Suas duas meninas santas criaturas haviam morrido antes e se chamavam Jamela e Janaína. Morreram afogadas no açude. Não eram gêmeas. Nada no mundo é gêmeo: a alegria, a dor, a esperança, o rancor da alegre dor. Se havia alguma coisa alegre no mundo era a dor, isso Arlete conhecia. Rezava o terço gritando. Janaína e Jamela nasceram no dia dos finados. Provocação? Acreditou que Jamela e Janaína eram a Jamela e Janaína afogadas. O leite empedrou como se fosse lápide o mamilo rosado. Rosa cheirosa de lápide, sem vala de pétala para sair o cheiro, sem velas de abelhas para mudar de lugar. O seio preso é pior do que dor de dente. O seio preso é um dente sufocando a língua. Cheiro trancado é fedor. A fé fede. Janaína e Jamela fermentaram aos bocados, aos bordados, trancadas em casa. Idade não havia. A única certeza é que uma nasceu dois minutos depois da outra. Qual? Arlete não controlou, gritando de dor. O grito é uma forma de rir. Vestiam a mesma roupa. A roupa das irmãs gêmeas mortas. Jamela gostava de ser Janaína e Janaína gostava de ser Jamela, para enlouquecer a mãe. Mas Jamela se agravava em Janaína pela cova abaixo da boca e Janaína se fingia de Jamela emagrecendo. O pai Boécio andava de caminhão pelas estradas. Nunca vinha para jantar. Nunca vinha para almoçar. A mãe chamava pela casa as quatro filhas, duas mortas e duas vivas, entre panelas fumegando e janelas cerradas. Qual das duas vivia no escuro? Deus não explica o que não escreveu. Festa de aniversário não havia. Janaína e Jamela visitavam o cemitério. Ficavam o dia inteirinho diante da cruz das irmãs mortas. Seus nomes antecipados na pedra, falecidos antes de nascerem. A morte é bem mais durável, não discorda, não quebra, não amolece. A mãe rezava um terço de trás para diante, revezando as novenas com Jamela e Janaína. Quem reza terço se acostuma a algemar as mãos. Esquerda sentada na direita. Filhas perfeitas são as que morreram. Cidade pequena é assim: tudo termina cedo para começar mais tarde. Jamela e Janaína são tão fortes que cresceram sem existir.


Só Arlete as viu, preocupada em apagar os dois minutos de diferença entre uma e outra.


Da antologia "Contos sobre tela" (Edições Pinakotheke, 142 páginas), organização Marcelo Moutinho, vários autores.

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