quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/2/2005 07:55:32 AM

O ESTADO DE S.PAULO, CADERNO 2, 2/10/05


CONVERGÊNCIAS DE UMA ESTRÉIA


Fabrício Carpinejar*





Minas Gerais não deixa de preparar surpresas. A nova é Sílvia Rubião, sobrinha do consagrado escritor Murilo Rubião, que faz sua estréia na poesia com "Tangências" (7 Letras, R$ 16). Diga-se desde já que é uma estreante, o que não deve ser confundida com principiante.


Tal como Adélia Prado, começa a publicar depois dos 40 anos, pronta, intensa e com uma aptidão rara a clarear o interior feminino. Se alguém ainda pensa que a obsessão das mulheres é conservar a beleza, descobrirá que se trata de corrigir desarmonias. "Um gesto traz a saia/ para a cintura exata/ a seda enrolada/ contém o excesso, disfarça/ incompletas imperfeições/ de tantas ancas."


A primeira virtude demonstrada pela autora é perseguir o silêncio para atormentar a linguagem. A linguagem deixa de ser uma obrigação comunicativa e vira premonição ("Tempo em que nada basta/ tudo é urgência, é ânsia/ o exagero em vigília"), com liberdade imaginativa para antecipar e alterar realidades. Opera no espaço do interdito, do pressentimento. Executa um jogo de provocação com os tabus familiares e as censuras psicológicas. Há nela uma mística da paixão como religião ingrata, em que a fé sobra mais do que os santos, mas ainda é melhor ter fé do que raiva.


Igualmente como Adélia, cria uma narrativa sutil dentro e entre os poemas, que se constitui em uma larga vantagem diante da fragmentação da poesia brasileira contemporânea. Tem conjunto, um núcleo de idéias que se move e troca de lugar - quase imperceptível - no fundo dos versos. Não substitui a vida, a intensifica, aplicando uma filosofia prática e sintética do mundo, em conselhos que podem ser soprados ao vizinho sem ofender. Nota-se uma aplicabilidade sábia do seu pensamento, nada é oferecido aleatoriamente, sugere uma verossimilhança de cenas que tensiona e refina o conhecimento.


Recorre a fluidez sinuosa da água para representar sua figura no amor, ora chuva, ora caudaloso pântano, ora deslumbramento, ora esquecimento. "Sem pressa, me deixa escorrer". Se a poeta procura a tangência, conforme explicita no título, encontra a convergência. As linhas da infância e da maturidade se completam.


Na poética de Sílvia, não importa a verdade, porém um modo de dizer a verdade sem destruí-la. Nas separações, obtém a dramaticidade do lento desvelamento. Apresenta limiares afetivos em que não há escolha, não adianta recorrer à impiedade e declarar ao parceiro que se perdeu tempo um com outro. A única alternativa é tentar diminuir a culpa da despedida. "No fim de tudo/ há uma constrangedora intimidade/ ele esmaga o cigarro no cinzeiro/ ela crava as unhas no próprio braço/ Quem primeiro desviaria os olhos? Quem enfim se renderia ao silêncio do outro?"


Seus poemas não são retalhos, em que os versos dependem mais da benevolência do leitor do que da legibilidade e do esforço criativo do autor. Suas metáforas trabalham unicamente para legitimar a idéia e a música, não querem aparecer mais do que está sendo dito. Suas rimas são costuradas em ziguezague, internas, perfeitas ao cantochão. "Colhe do cáctus a flor ausente/ talha ali, com arte/ sem que breve eu te perceba/ sulcos de encanto e visgo".


Sílvia tem uma contrição rítmica que evoca os melhores momentos da uruguaia Idea Vilariño. Fala do amor com sobriedade. Não avança no confessionalismo. Quando chega perto da catarse, muda de assunto. É sensual e sensitiva, procurando descrever o lugar em que mora com detalhismo de cores e fidelidade auditiva. "O ar respira mangas e magnólias/ as cigarras enchem as tardes de lamento". Explora os costumes para fundamentar a presença. É um achado sua percepção de um homem se barbeando no espelho, a decidir entre a tarefa e a vaidade. "Toma o pincel/ espalha com preguiça". Transforma o espelho em um poço de sentimentos contraditórios. O homem experimenta ali o poder da metamorfose, de se machucar ou de assegurar o brilho perolado.


No mais puro sofrimento, Sílvia não sacrifica a elegância. "Desvio-me como posso, dobro-me/ faço que me encaixo nesse esquadro/ e escapo". Sua timidez e pudor são uma forma precisa de consolidar a intimidade.


* Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de Como no Céu/Livro de Visitas

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