quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/1/2005 08:40:45 AM

Jornal do Brasil, Caderno Idéias, 1º/10


OS BICHOS ESTÃO SOLTOS

Livro brinca com a irracionalidade civilizada dos homens


Fabrício Carpinejar*

Jornalista e poeta





Cachorros do céu

Wilson Bueno

Planeta

96 páginas

R$ 27


Os homens ficam ridículos quando imitam os animais, mas os animais ficam ainda mais ridículos quando imitam os homens. Esta inversão é o ponto alto de Cachorros do céu (Planeta), o novo, hilário e histriônico livro de Wilson Bueno, poeta e ficcionista paranaense, autor das narrativas Amar-te a ti nem sei se com carícias, Cristal e Meu tio Roseno, a cavalo e dos poemas de Mar paraguayo, em que mistura português, espanhol, portunhol e guarani.


São vinte e cinco contos que retratam a vida estressada e panteísta da floresta. Na coletânea, regurgitam e esguicham humor e escárnio, inversões e aliterações, paradoxos e brincadeiras orais. Wilson Bueno é um narrador que não condiciona às obras ao seu estilo, porém se adapta ao estilo de cada obra. É o livro que manda o que ele tem que dizer, resultando sempre, a cada volume, em um surpreendente universo a explorar.


Cachorros do céu, que segue a trilha aberta em Manual de zoofilia e Jardim zoológico, está mais próximo das metamorfoses oníricas, poéticas e irascíveis de Ovídio do que das fábulas morais de La Fontaine. De lição de moral, pouco se encontra. Não é um livro recomendável às crianças para disfarçar carências e contrabandear ideologias. Não servirá para formação do caráter, pois deforma os lugares-comuns e os truques redentores dos contadores de histórias. O ''era uma vez'' termina sendo ''uma vez sempre''.


Ovídio não aparece apenas na epígrafe (''Se os bichos falassem, nada diriam''), presente também como a alma mutante do bestiário. Tudo muda para permanecer o mesmo. Sapos se apaixonam por girafas e jibóias, lebre se enamora por gato e depois se conforma com os dentes de cavalo do macaco, corvo se junta com a hiena. A monogamia anda com índice baixo na mata. Não existem jaulas separando as espécies. Os desvios e vícios humanos são distorcidos e ampliados em trejeitos nos animais. Símios fumam; lebre é obrigada a tirar umas férias, sujeita a um enfarte de miocárdio; rã escreve, não encontra editor e só é reconhecida depois de morta. Percebe-se uma indisposição em todas as tocas e galhos. Na verdade, nenhum animal está satisfeito com sua condição. Um fica achando que o outro vive melhor. O zoomorfismo de Wilson Bueno torna-se um manual perfeito da inveja. O ponto alto do livro são justamente os diálogos metafísicos sobre as diferenças entre o Urubu e o Condor, a Lagarta e o Cágado, a Lebre e o Cágado e o Colibri e a Borboleta. Neste último, o Colibri queixa-se que gostaria de ser como a Borboleta, sugando o néctar das rosas e voejando pra lá e pra cá. A Borboleta não deixa por menos e mostra que as aparências - não somente enganam - como têm um preço alto:


''- Você diz isso porque não sabe o duro que é ser por longuíssimo tempo uma vagarosa, peluda e repugnante lagarta...''


Os bichos são caricaturas verbais, em uma linguagem ora empolada ora carregada de gírias, que se diverte com os ecos do aprendizado infantil, a exemplo do excesso de erres no causo de ''Rildo, o Rato'' (que lembra o bordão ''o rato roeu a roupa do Rei de Roma''). O crítico Ivo Barroso, na apresentação, destaca a riqueza dos recursos estilísticos: ''O acervo fonográfico contempla desde os arrulhos machadianos das iaiás-garcias às asperidades portunhólicas das chinas paraguaias''.


As bizarrices são inteligentes e ácidas, indicadas para digestão demorada das jibóias. A comédia de costumes põe a irracionalidade civilizada dos homens (alpinistas sociais) no lugar da racionalidade selvagem dos bichos (cadeia alimentar) e converte o estranhamento em identificação. As histórias partem de provérbios como ''cobras criadas'' e ''parente é serpente'' para dissecar a patologia da fama, assim como expõem estruturas familiares gangrenadas e a violência das metrópoles. Em Cachorros do Céu, não falta seqüestro. Ovos de águia são raptados pelo corvo e o resgate é mediado pelas cobras advogadas, que solucionam o caso devorando seus próprios clientes. Galo é o rei da rinha na música pop. Assediado por galinhas velhas, troca seu fiel público para se casar com uma franga nova. Macaco Eusébio, um tenor admirado pelas suas óperas nas altas árvores, é asfixiado pelo sucesso, muda de identidade e vira gato. Qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência.


* Fabrício Carpinejar é autor de Como no céu/Livro de Visitas

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