quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/2/2004 06:06:29 PM

UMA COLEÇÃO DE CIDADES RARAS

Maria Esther Maciel lança O Livro de Zenóbia, pequena ficção sobre a delicadeza de guardar a memória familiar


FABRÍCIO CARPINEJAR/ Jornalista e poeta, autor de Cinco Marias e Caixa de Sapatos, entre outros livros



Guardar é diferente de esconder, consiste em proteger e zelar um bem da corrosão temporal para melhor partilhar. Esconder já acentua um egoísmo, a recusa de disponibilizar algo ao mundo. O Livro de Zenóbia (Lamparina, 157 páginas), estréia na ficção da poeta e ensaísta mineira Maria Esther Maciel, guarda, emoldurando recortes e depoimentos de uma vida. Uma vida mais dada para fora do que para dentro da escrita. Uma vida mais falada do que letra, mais ouvido do que boca, mais feita do que se ouviu do que aquilo que teria acontecido. Em breves capítulos, a fábula retrata o percurso de Zenóbia, personagem nascida na Fazenda Palmyra, em Patos de Minas (MG), em 1922. Bióloga de profissão e escritora nas horas vagas, teria legado contos, poemas e romances inéditos, conforme revela uma nota ao final da obra. Os dados objetivos também pouco acrescentam. O que a autora faz é iluminar e não explicar. São assobios litúrgicos a mostrar os interesses, as manias, as crenças de uma mulher recolhida em seu interior e na família. Não tem nada de assombroso, nenhuma briga, ação ou crise. O enredo poderia ser resumido simplesmente como a narração do que se passa no estômago, no coração e no pulmão de um corpo feminino. Fica-se em contato com os pesadelos, lembranças inacabadas, sensações, com o refinado artesanato de sua sensibilidade. E é a falta de acontecimento que gera uma tensão misteriosa, uma hesitação, com a cesura mágica dos parágrafos, tal segredo se revelando aos poucos. Prevalece um encantamento do círculo corriqueiro, de permitir o mundo correr sem interferir no curso.


Zenóbia é sobrenatural porque é comum demais. Não pede nada que não recebe. Não deixa de oferecer o que sobra. Essa normalidade de Zenóbia cativa pela fidelidade, pela devoção aos ensinamentos da mãe e da avó, por uma santidade leiga, que impõe essencialidade e pobreza e recusa o exagero dos milagres. A protagonista se esvazia para se preencher. Ao ajudar os vizinhos e se doar aos outros, multiplica a existência amorosa. Não vive à imagem de Deus, mas em suas "margens". Numa cidade onde não se é notícia, cultiva princípios e virtudes em uma estreita horta, nos dons culinários e nas leituras da cabeceira da cama. Fala de poesia como quem dá conselhos de saúde.


"O esquecimento é mesmo o único perdão? - perguntou Zenóbia à sua mãe, quando esta lhe contou o caso triste de uma irmã. Era sempre assim nessas manhãs possíveis: as duas falavam dos abismos da casa e dos senões do dia, sem resíduos de aflição. Ou cogitavam sobre as coisas que lhe poderiam advir a qualquer hora, ou não. Eram seus instantes de afinidade sem dissídio, de afeto sem ficção. Cada uma com seu vôo implícito, sua quase solidão."



O livro tem um perfil de diário, de um baú sem fundo, com listas de palavras prediletas, ervas daninhas, peixes perplexos, cidades raras, temperos e ervas de cheiro, aves em perigo, orquídeas e bromélias e obras favoritas.


Em primeiro lugar, Zenóbia expressa o que gosta, sem medo de se expor. Em segundo, sua dispersão é concentração. Não valoriza a vivência racional e cronologicamente, mas segundo a intensidade de seus desejos. A aparência descontínua do texto oculta - ao fundo - uma organização rígida de aforismos e saberes. Ela não classifica, ato da memória, porém coleciona, ato da imaginação. Colecionar é ceder a vida em troca, representando o caminho vivido e as escolhas a partir de um mostruário de pertences.


Classificar é manter um distanciamento crítico, uma independência pessoal e uma autonomia de análise. Enquanto a coleção busca a qualidade poética e a convivência, reconhecer uma ancestralidade anterior; a classificação pretende resultados práticos, científicos, imediatos, comprovando teses pela quantidade e dissecação. Para a coleção, a coisa já é um fim; para a classificação, ela é apenas um meio.


Saudáveis obsessões - As coleções de Maria Esther Maciel destoam ainda do recurso de "inventário" da poesia de Manoel de Barros, em Gramática Expositiva do Chão, ou das instalações do artista plástico Arthur Bispo do Rosário. Os objetos dela não trocam de função, permanecem do princípio ao fim com sua integridade espiritual e emocional. Barros e Rosário, pelo contrário, purificam os objetos da doença do consumo, alteram suas finalidades, renovando o sentido de banalidades e mistificando coisas vulgares e triviais em verdades libertadoras.


Maria Esther Maciel não parte para a transubstanciação, quer o delírio da coisa enquanto coisa. Mantém o sentido do que vê, separa para preservar, não despreza o consumo para favorecer o modo como cada coisa foi consumida. Ela se importa com a história do uso acima das necessidades materiais, com o valor da permanência e com o que lhe é caro e prazeroso acima do preço e da cotação. Encontra o êxtase na intimidade com o prosaico, não no estranhamento e distorção.


Um dos "olhos mágicos" de leitura está na frase de uma tia-avó: "Quanto mais as coisas mudam, mais continuam as mesmas". Zenóbia, serenada na imutabilidade, não muda as amizades, os amores, a si mesma para assim permanecer mudando. Suas mudanças um tanto sutis se referem a compreender o lugar de nascimento e aproveitá-lo em seu tempo.


A prosa poética não oferece definições exatas, e sim estados de alma, vagas noções de lugar, pressentimentos que podem ter eclodido ou não. Às vezes, há coincidências entre a profecia e a vivência; outras, esquecimento do corpo de completar uma frase. "Tudo acontece em nós muito antes de ter acontecido". Zenóbia, adiantada de si porque não renega o passado, publica sua biografia em todos que a enxergam. Seus fatos, na verdade, são os casos que conta. Admira as sutilezas, os detalhes diáfanos, os hábitos herdados, como ruminar os dias de chuva, lustrar as fivelas dos sapatos, comprar palavras ainda que roubadas, batizar a filha que não nasceu, descobrir na crueldade da avó uma forma de amor, catar nomes capazes de espantar os pássaros nos catálogos telefônicos.


Os extremos no livro se convidam, se tocam, sem pressionar confidências. Tudo é um álbum de família com fotos arrancadas, cheio de conselhos no lugar das legendas. Arranca-se a foto para um dia achá-la no bolso de um paletó e de um casaco. Sabedoria que vai se completando de geração a geração. "Antes de começar a comer, não diga nenhuma palavra." Curiosidade caseira, doméstica, nunca reprimida, expansão cotidiana reconhecível nas vozes de outra escritora mineira, Adélia Prado.


Se das três mortes, Zenóbia conservou somente a lembrança da primeira, com certeza não deixou de viver todas as três. "Existir não é plágio", a personagem bem sabe o que diz, existindo além da escritura.


(Diário Catarinense, caderno Cultura, Florianópolis/SC, Edição nº 6689)

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