MEU MEDO DA VELHA
Arte de Picasso
Fabrício Carpinejar
Eu só jogava futebol. Ou pegava frutas, mas depois de jogar futebol. O futebol era o início e o fim de meu dia. O resto ocupava em imaginar meus gols.
Quando criança, o terror consistia em chutar a bola na casa da vizinha. O meu pátio tinha uma ligação com o pátio dela. Uma cerquinha não dava conta. Na decisão da partida, a bola escapulia. Na primeira vez que fui pedir, ela já ralhou: "não devolvo, é meu terreno". Foi apelidada para sempre de Velha. A Velha. Nem sequer cogitei perguntar o nome. Eu pergunto o nome de quem guardo esperança.
Eu e os irmãos começamos a criar estratégias de guerra, como descida do telhado, segurar as pernas do outro de cabeça para baixo e se fingir de mendigo ("Tem pão velho?") no interfone para distrair sua atenção. O jogo ganhava entusiasmo. Mas ela comprou um doberman, que dificultou os resgates. Além de zelar com latidos histéricos, o cachorro mostrava uma tara incomum pelas bolas (será que foi treinado?). Era obsceno: ele lambia as bolas. Com toda a conotação sexual que pode existir. Lambia a bola, como um filhote. Levava a bola como se fosse um boneco inflável. Roubamos da geladeira a chuleta de domingo. A mãe culpou depois a empregada (desculpa, Aurélia, foi a gente). Arremessei o alimento do portão enquanto os manos pulavam a cerca por detrás. Funcionou, mas não tinha como furtar a carne todo dia.
O doberman careceu de patas para guardar tantas esferas. E foi assim que definimos nossa vida: caso caísse na Velha, o brinquedo era morto.
Não imaginava que o trauma fosse se repetir comigo aos 33 anos. Jogo futebol com o Vicente no terraço. Antes, seu chute não ultrapassava a altura da cerca. Garantia de diversão. Porém, ele ganhou força na perna e lança agora a bola longe, para os telhados das casas embaixo. Foram quatro bolas para o telhado da vizinha, com o barulho estridente de ovo.
Gritei para meu filho: "abaixe-se! Para ela não enxergar". Expliquei que ela não devolveria, que estávamos colocando sua casa em risco, poderíamos quebrar alguma vidraça.
Ele se calou, assustado, o susto é a compreensão de um menino de quatro anos.
Sobraram três bolas.
Não tocamos mais no assunto e tentávamos nos controlar. Até que meu filho inventou de dizer ter sonhado que recuperou todas as bolas, que recebeu uma sacola com elas e citava uma por uma, o tipo, a cor, o peso. Não reprimia a árvore dos cílios.
"Sonho se realiza, pai?"
Fui para o trabalho incomodado. Como comprar todas as bolas parecidas com as dele? Não havia jeito. Adquiri em diferentes lugares.
Decidi, com o medo ancestral da Velha que estava introjetada em mim, bater na casa da vizinha. Apertei o interfone, esperei um pouco, quando completava a meia-volta, uma voz feminina replicou: "quem é?".
Avisei que era o vizinho do terraço.
- O Fabrício?
- Sim (ela sabia meu nome).
- Só um minutinho.
O minutinho demorou um corredor de hospital.
Ela abriu a porta com um riso. Pensei que fosse sádico, não era. De ternura severa.
- Queres as bolas?
- É que meu filho sonhou que conseguiu de volta.
Logo em seguida, ela veio com uma sacola de oito bolas.
- Toma todas que caíram aqui, podes vir sempre. E manda um beijo para teu menino. Sou professora e o que alegra os pés alegra as mãos.
O nome dela é Dorinha.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
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