quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/29/2006 10:25:06 AM

BORDADO COM AS INICIAIS

Arte de Henri Michaux


Fabrício Carpinejar





Eu tomava ônibus em viagens mais longas com meu travesseiro.


Um longo travesseiro pendurado no braço, além da mala e do ar madrugado.


Era o equivalente a levar uma centelha de casa para um lugar impessoal. Era um resto do quarto. Um pedaço da cama. Enganava o desconforto da poltrona com a intimidade de um capricho pessoal. Facilitava meu descanso entre o corredor escuro e a janela de luzes bruxuleantes.


Ficava menos enjoado da mistura de diesel, de couro e cortinas antigas. O travesseiro é leal porque traz os cheiros dos cabelos depois do banho. Tanto faz a estação, o travesseiro é o último dia da primavera. A lavanda da roupa.


Ainda observo muitos passageiros, crianças, jovens e velhos, carregando o travesseiro na rodoviária. São figuras engraçadas, a arrastar o casaco da infância. Segurando o pano como um filho agasalhado, dormindo, a manter os cuidados do leite e do peito.


Quando embarcamos num amor, levamos o travesseiro. O travesseiro é o que temos de mais particular. Mas quem nos recebe pode identificar nele simplesmente um pano velho. Uma superstição. Um laço antigo. Uma teimosia. Não enxerga que uma vida nova não apaga a vida anterior.


Pode não ser o travesseiro, pode ser uma frase, um gesto, um ritual familiar, que vale muito e que carregamos conosco. Um objeto que nos identifique. Que diga de onde viemos e que mostre que temos uma história.


Há a idéia de que o amor é ambição. Sobrenatural, que não reside nos pequenos contentamentos. A maioria não acredita que o amor cabe num travesseiro.


Por mais que se dê linguagem e atenção, o outro achará pouco e falará de culpa e da confusão. Falará de condicionamentos e que não está preparado, como se houve preparação para amar.


Por mais que se cozinhe, faça surpresas, leve a amizade para passear de mãos dadas, o outro achará pouco.


Por mais que se apaixone e se enlouqueça, que mude os hábitos, o outro achará pouco. Por mais que se acredite, que arrepie as verdades ternas do sopro, o outro achará pouco. Por mais que se beije com gosto no cinema, abrace com força, o outro achará pouco. Por mais que se doe, que se doa, o outro achará pouco.


Por mais que se abra a memória, confidencie segredos, o outro achará pouco. Por mais que se transe na mesa, costure as roupas, ajude nas economias, inspire o trabalho, o outro achará pouco.


Por mais que se pouse, que se proteja, o outro achará pouco.


E damos tudo o que temos e o outro achará pouco. E damos tudo o que poderemos ser e o outro achará pouco. Sempre pouco.


Falimos e o outro achará pouco. Nascemos de novo e o outro achará pouco. Morremos de novo e o outro achará pouco. Exaustos, arrebentamos o travesseiro e não entendemos como as penas já souberam voar.


Pouco, pouco, pouco.


Quem achou pouco, não entende de amor. Quando se ama, acorda-se vestido para o milagre.

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