quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/25/2004 10:33:34 AM

JORNAL ZERO HORA, CADERNO CULTURA

Porto Alegre, 25/09/04. Edição nº 14278




QUE FAZER DE AFFONSO

ROMANO DE SANT'ANNA?




O poeta mineiro tem toda sua obra - de 1965 a 1999 - reunida em dois volumes da coleção de bolso da gaúcha L&PM. É uma poesia sem fobia do cotidiano


FABRÍCIO CARPINEJAR

Jornalista e poeta, autor de Cinco Marias e Caixa de Sapatos, entre outros livros

Foto(s): Paula Foschia, divulgação/ZH




Affonso Romano de Sant´Anna




O poeta mineiro tem toda sua obra...




... reunida em dois volumes da coleção de bolso da gaúcha L&PM




Há duas formas de anonimato: de quem é realmente desconhecido e do excessivamente famoso. As duas visibilidades retraídas têm o mesmo peso. Não deixa de soar estranho que o iniciante possa ser confundido com o veterano, o comum com o célebre. Mas é o que acontece. Poetas de tão conhecidos, lidos, amados e odiados entram automaticamente no senso comum e deixam de ser discutidos. Ingressam numa espécie de limbo, pairando acima da vida e da morte, dos prêmios e das críticas, como um nome a memorizar ao vestibular. Todo mundo conhece um pouco, mas longe de atualizar seu conhecimento. O verbo ler é substituído pelo substantivo consulta. O escritor Affonso Romano de Sant'Anna é uma das vítimas de sua própria fama. Alguém pode dizer que já o leu, porém tem na cabeça apenas os versos de Que País é Este?, em que mostra como o Brasil purga seu passado criminoso. Outro pode afirmar que já o conhece, entretanto, folheou apenas A Catedral da Colônia, onde mistura impressões da Europa com sua terra natal. A maioria deve ter lido algum poema seu, talvez um fragmento de A Vergonha de ser Brasileiro, no jornal ou na internet e já se convence de que é seu leitor de carteirinha. Ninguém é velho o suficiente para não fazer novas amizades ou para descobrir o futuro da voz no passado de outro autor. Agora a L&PM possibilita descobrir a obra poética inteira de Affonso Romano de Sant'Anna em dois volumes, reunindo oito livros de 1965-1999, em mais de 600 páginas, a preços acessíveis de R$ 21 e R$ 19. Uma chance para as novas gerações conhecerem uma das trajetórias mais polêmicas, impulsivas e provocativas da poesia brasileira. Extravagância? Exagero ainda é melhor do que omissão, do que ocultar um nome ou um estilo por não integrar nenhuma tribo ou seita. A única panela que Affonso vive é a de pressão. No resto, tem a soberania solitária do verso.


Mineiro de Belo Horizonte, nascido em 1937, caracterizado pelo crítico Wilson Martins como o sucessor natural de Carlos Drummond de Andrade, Affonso teve participação ativa nos movimentos político e social de luta contra a ditadura. Midiático, leu uma série de poemas para a televisão (Rede Globo), transmitidos no horário nobre com uma audiência de 60 milhões de pessoas. Realizou também versos sobre futebol e a Copa do Mundo (1986), que eram exibidos após os jogos do Brasil.


Sua Poesia Reunida mostra que recitar para Affonso é o equivalente a reclamar, não exaltar ou mascarar. A verdade é mais importante do que a beleza. É possível encontrar nele um precursor do rap no Brasil. Põe no rádio esses dois versos a seguir:


Como o rap, verifica-se a mesma repetição centrando o discurso, possibilitando improvisos, dispersões e giros sem perder a intensidade. Já o compararam a Neruda pela adesão momentânea do discurso a fatos esporádicos e circunstanciais, mas sua poesia não é engajada, porque não está disposta a construir nada, utiliza lugares-comuns para destruí-los, para desautorizar a autoridade dos provérbios que não fazem pensar o comportamento ou pesar a existência. Em seu primeiro livro, Canto e Palavra (1965), Affonso deu a síntese do que buscaria, dividindo os poetas em homem-texto e o homem-canto. Adotou o segundo modelo performático, cênico, valorizando o andamento gritado acima de tudo, da melodia áspera, da convocação e intervenção. Sua lírica é ritualística, como longos poemas épicos transmudados para um fundo lírico, presente e urbano. Procura o que a palavra esconde mais do que aquilo que a palavra evidencia. Articula-se numa possessão da consciência, no desafogo das contradições que não permitem diminuir sua culpa de estar vivo. Culpa é a chave emocional dos textos. Uma culpa coletiva, herdada, e que não deixa de ser pessoal, sinalizando a responsabilidade pelo seu espaço de atuação. Sua espontaneidade é dedução, construção, desvinculada por completo da escrita automática, do inconsciente. Ao invés de acreditar piamente no que diz, se reescreve, se questiona e se censura, tomado de autocrítica.


Riocentro, miséria e marginalização são temas que migraram da política para suas páginas, expondo uma subjetividade histórica (que difere da objetividade histórica, pois acrescenta e reverbera o impacto dos acontecimentos em seu pensamento). Teve a coragem de adoecer no seu tempo, de optar por uma escritura permeada de sobressaltos de sua época, sacrificando o distanciamento e ganhando em contundência. Não fica em cima do muro, toma o partido drummondiano dos homens partidos. Affonso medita e reconhece a poesia como cultura, além das cercas de um gênero e da literatura.


Se no primeiro volume de Poesia Reunida Affonso pensa em voz alta, em um viés de epicidade turbilhonada, no segundo volume ele assume uma condição de cantochão, seduzido pelas anotações de viagens e detalhes do relacionamento amoroso e da família. Começa a pensar em voz baixa, culminando com as conversas sobre a velhice, a morte e a permanência da memória em Textamentos (1999). É nesse momento que alcança seus altos flagrantes luminosos, em poemas curtos e aforísticos: "Não se pode esgotar o dicionário / ou amar completamente / tudo o que encontramos". Da mesma forma em que o cão urina para marcar seu território, Affonso Romano de Sant'Anna não tem pudor e fobia do cotidiano.


Saiba mais:



O Lado Esquerdo do Meu Peito, 1992


"Todas as guerras são estúpidas,

não só as púnicas.

Todas as guerras são estúpidas,

inclusive as guerras santas"


Que País É Este?, 1980


"Há 500 anos caçamos índios e operários,

há 500 anos queimamos árvores e hereges,

há 500 anos estupramos livros e mulheres,

há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

Há 500 anos dizemos:

que o futuro a Deus pertence,

que Deus nasceu na Bahia,

que São Jorge é que é guerreiro,

que do amanhã ninguém sabe,

que conosco ninguém pode,

que quem não pode sacode."

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