quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/21/2006 10:54:58 AM

QUALQUER COISA

(PEQUENA HISTÓRIA DE AMOR)


Para Fernando Chuí, protagonista da fábula

Arte de Tom Wesselmann


Fabrício Carpinejar





Ele vai dormir no sofá.


Não porque brigou com ela, não porque se afastou, não porque estão ressentidos.


Não houve desentendimento, princípio de discussão, mentira naquela noite.


Ele vai dormir no sofá por escolha.


Por decisão.


Vai dormir no sofá porque ela não estará em casa.


Quando ela viaja, ele pega seu travesseiro, sua coberta e deita na sala. Liga a tevê e se distrai da solidão.


Tudo o que servia em sua época de solteiro agora o aborrece. Não partirá para festa, beber com amigos ou jogar futebol.


Antes bastava a namorada sair e ele se via livre, louco para rua.

Hoje a mulher sai e ele se vê abandonado.


Liga o som e faz-de-conta que ela está tomando banho.


Como um cachorro, fica mais perto da porta. Como uma criança, fica mais perto da janela.


Não suporta a cama de casal. Não agüenta girar o corpo sem encontrá-la.


Pega um vestido dela no cabide, ameaça cheirar e recua. Conclui que isso já é doença. Mas cheira. Cheira com a vaidade da doença.


Por alguns momentos, tenta imaginar como dormia sozinho na adolescência. Pressiona os olhos com a contundência dos ouvidos. Fracassa. Depois de viver, imaginar é mais difícil.


Ele depende do corpo dela para ler de noite. A luz do abajur é muito fraca, mortiça.


Pisa no quarto para buscar as roupas. O quarto é uma despensa durante os dias da ausência.


Ele acampa em seu apartamento. Muda os hábitos, come qualquer coisa, bebe qualquer coisa, telefona qualquer coisa, trabalha qualquer coisa.


Qualquer coisa é sua vida nas próximas horas.


Ele acreditava que a conhecia. Isso quando a pediu em casamento.

Ele só não esperava não se conhecer depois dela.


Casou com ela com toda a clareza.

E casou consigo no escuro.


Tudo o que conheceu dela desconheceu de si.

Liberou memória na personalidade.


Percebeu que os limites não são os mesmos. Os limites trocam de idéia.


Sua mulher tem limites diferentes hoje de ontem de amanhã.


Não se repetem.



O limite do cansaço. O limite da voz. O limite da brincadeira. O limite da provocação. O limite da paciência. O limite da conversa. O limite dos filhos. O limite do prazer. O limite da educação. O limite do trabalho. O limite do silêncio. O limite do amor.


Assim que ele aprende os limites dela, ela muda os limites.


Não é gozação. Ela não age por mal.


Foi ele que a ajudou a superar os limites.

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